terça-feira, 31 de maio de 2011

Memórias afetivas do fim do mundo

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Que o mundo ainda exista e nós, os seres humanos, continuemos a pintar o oito do infinito e bordar o sete da criação; que os deuses ainda gozem de nossa fragilidade e adiem, milênio após milênio, o encontro definitivo com o Ser, o Espírito, o Absoluto; que as estrelas ainda estejam firmes no além do céu e os cometas já não tenham martelado sobre nossas cabeças a sentença de extinção do processo com resolução do mérito; que eu escreva estas linhas e você, leitor sem fé, acredite em minha galhofa e saiamos nós, deste episódio, impunemente; que assim seja e continue a ser, admito com sinceridade, é fato muito estranho.
O fim do mundo está marcado desde não-se-sabe-quando para sempre-se-prevê-algum-evento. Ora, ele virá daqui a tanto tempo que você e eu, nossos filhos e netos, bisnetos e tataranetos não restaremos sequer na memória de nossos enésimos descendentes. Ora, ele está logo ali, na esquina de casa ou no elevador do trabalho, no cafezinho do Calçadão ou na próxima marola do Cabo Branco. Mas ele sempre se degenera em zombaria e loucura para, logo em seguida, regenerar-se em tecido viçoso, como um fígado em ciclos de sanidade e doença, regulando os humores do gênero humano...
Uma propriedade importante do fim do mundo é sua capacidade de adaptação seletiva, sobretudo à maior das adversidades: sua não ocorrência. Vejamos um exemplo. Logo após a morte de Jesus de Nazaré, os primeiros cristãos aguardavam o retorno triunfal do Redentor para dali a pouco: depois da ceia, ou antes do sacrifício no Circo Máximo. Ocorreu que o tempo foi passando e não se propagaram as pragas nem se romperam os selos celestiais; assim, o Apocalipse teve que resignar-se aos fatos, transmudando-se na esperança do Paraíso ou no medo do Inferno após a morte individual.
Não existe época certa para o surgimento das profecias apocalípticas, mas há eventos fortemente atrativos. Uma data redonda, como a chegada de novo milênio, tem servido como catalisador irresistível. Some-se ao marco cronológico um pouco de dissolução dos costumes e crise política ou econômica e teremos as evidências irrefutáveis de que o último dia aproxima-se. Assim, faltarão apenas a primeira gota do dilúvio, a qual poderá vir na saliva de algum falso profeta histriônico, bem como o Anticristo, convenientemente identificado no líder da oposição ou no chefe da congregação religiosa concorrente.
O milênio, a crise e o Anticristo são os elementos de uma espécie apenas de fim do mundo: o coletivo, que mobiliza toda a engrenagem social em torno do cerrar apocalíptico das cortinas sobre a tragicomédia humana. Há que falar-se em outra espécie: o fim do mundo individual, fruto das operações físico-químicas extraordinárias que se processam na mente de algum indivíduo, digamos, excêntrico, varridamente excêntrico. Afinal, não se classifica nessa categoria um caso como o de Roldão Mangueira e seu dilúvio da Sexta-Feira 13 de maio de 1980, em Campina Grande? Eis a profecia:

Uma enorme bola de fogo cruzará o céu, o Sol girará por três vezes consecutivas, um ensurdecedor trovão ecoará por toda a Serra da Borborema. Em seguida, choverá ininterruptamente por 120 dias.

A promessa desse fim do mundo levou de roldão o juízo de Mangueira e suas borboletas azuis para o Horto onde escapariam do dilúvio, tal como Noé em sua Arca. Há até quem afirme que Roldão ainda ameaçou andar sobre as águas do Açude Velho a fim de provar seus poderes proféticos. Transcorrido em branco o Dia Final, foi o próprio São Pedro quem passou telegrama no Diário de Pernambuco, justificando a impossibilidade e reabrindo o prazo para outra quixotada:

Infelizmente não pudemos atender pedido dilúvio dia 13 Campina Grande PT Informe interesse outra data PT 

Da Borborema aos Bálcãs, houve também o caso de Vassula Ryden e seu... Mas, que digo? Vassula Ryden?! Ah, minhas memórias afetivas do fim do mundo... Menino criado em casa de avó, fui instruído desde cedo nas certezas e nos mistérios da fé. Além de ler a Bíblia, ir à missa aos domingos e recitar o rosário, aqui e acolá eu enfrentava atividades religiosas complementares, como as noites de Maria em maio ou as novenas de Natal em dezembro. Parte considerável de minha instrução religiosa, ficava ao encargo de uma tia-avó que, mesmo morando em Recife, mantinha-me a par das devoções por meio de cartas.
Foi assim que terminei travando contato com Vassula. Uma versão feminina e contemporânea de Paulo de Tarso, que fora derrubada do cavalo da falta de fé e agraciada com o excepcional privilégio de ver o Cristo e com ele manter reveladores diálogos. Além das tradicionais advertências sobre a decadência moral e o ateísmo, Vassula trazia consigo uma novidade: o Redentor voltaria em breve e cabia a ela ser a profetiza do retorno triunfal. “Arrependei-vos e crede no Evangelho!” – ela tentava convencer a todos em suas jornadas missionárias. E convenceu minha tia-avó, que, por sua vez, convenceu-me.
Aos doze anos de idade, experimentei o fim do mundo pela última vez. E como ele era saboroso! Deliciosamente insano! Uma flor de delírio que brotou e amadureceu lentamente no fruto de minha imaginação verdosa... Com o frescor da minha inocência, tracei no céu as linhas imaginárias do palco celeste onde se daria a peça: a fenda luminosa, as trombetas angelicais, a voz inefável do Altíssimo, as fileiras de inocentes e condenados seguindo o destino determinado por suas respectivas sentenças... E como aguardei, em cada nuvem de chumbo ou em cada trovão estridente, a terceira batida de Molière!
E como rezei para que o fim não tardasse... Que o Senhor surgisse no céu sem demora, antes da prova de matemática ou logo após o mais recente desentendimento dos meus pais. Até que um domingo, minha tia-avó ligou de Recife: Vassula recebera do próprio Cristo a confirmação do Juízo Final; seria na quinta-feira seguinte, às três horas da tarde. Não pude conter a euforia! Espalhei a notícia com o fervor de um arauto: em casa, na escola e entre os vizinhos... eu dava por decretado o fim deste mundo, enquanto todos davam por irreversível o processo da minha loucura...
Atravessei a semana em orações e vigílias. Na quarta-feira, despedi-me dos colegas na escola entre a esperança de revê-los no Paraíso e o temor de não encontrá-los no Inferno; à noite, deitei-me com uma dúvida desconcertante: seria aquela a última vez em que eu dormiria? Com a desculpa de estar doente, não fui à escola na quinta. A manhã arrastou-se. Ao meio-dia, almocei com a minha família, emocionado por saber que nunca mais nos sentaríamos em torno daquela mesa. Quando a tarde avançou e a hora D aproximou-se, sobreveio o instante crítico.
Vassula convencera minha tia-avó, que me levara no papo, mas eu não conseguira nenhum adepto para o fim do mundo. Os colegas e os parentes distantes consideravam-me doido varrido, enquanto meia dúzia de outros, mais generosos, punha o devaneio na conta dos meus doze anos. Então, quando chegou o momento de ir à igreja para aguardar o rasgão no ventre do céu, ninguém se habilitou a acompanhar-me. Tive que ir só, deixando para trás as pessoas mais queridas, sem saber se e como voltaria a vê-los... O fato é que os vi, sim, logo depois.
Na igreja, senti o conforto de encontrar uma dezena de fiéis, a quem as palavras de Vassula haviam alcançado. Esperavam o fim dos tempos e a eles uni-me no mesmo rosário. Às três horas da tarde, o Sol esparramava-se no céu como manteiga. De olho no relógio, com o coração a sair pelos ponteiros, contei cada segundo do primeiro minuto na esperança de que em qualquer um deles a promessa iria cumprir-se. Às três horas e um minuto, quis chorar de decepção, mas também quis sorrir de felicidade; afinal, o mundo não se acabara, mas minha saborosa vida continuaria. A congregação dispersou-se.
Voltei para casa e para a escola. Ia humilhado. Suportei a pilhéria de alguns, encarei a repreensão severa de outros e por bom tempo ainda fui advertido de como fora crédulo e tolo. Até que o episódio escorregou na latrina da memória e misturou-se à invenção...

***

Os outros fins de mundo não têm o mesmo charme narrativo do segundo. O primeiro, convenientemente deixado em segundo plano, prometeram-me na escola primária. Em algum momento do futuro, a estrela solar entraria em colapso, sua energia aparentemente infinita emitiria o último sopro de luz e todos nós morreríamos de fome e frio... dia após dia... Mas esse futuro era tão longínquo que não valia a pena perder o sono e o juízo em virtude dele. Quando sobreveio o terceiro, marcado para 11 de agosto de 1999, eu já manifestava os primeiros sintomas da infecção racional e tudo o que guardei do evento foi o comentário de um colega de classe no horário marcada para o instante final:
— O mundo acabou e, como é aula de matemática, a gente deve estar no inferno!
Daí em diante, a infecção alastrou-se até a septicemia. Tornei-me racionalmente blindado contra o apocalipse e migrei para o lado dos que apenas se divertem com a renovação de suas promessas. Sim, colega cético, nada há mais divertido que o fim do mundo. Afinal, se existem dois eventos absolutamente impossíveis, eles são o princípio e o fim de tudo o que existe: à proposição da causa primeira, retornaremos sempre à mesma pergunta sobre o que a originou; à especulação sobre o último suspiro cósmico, retornaremos sempre à mesma pergunta sobre quanto o sucederá. O que nos resta, pois, senão o devaneio e o riso?

2 comentários:

  1. Valeu, poeta! Com esse espaço todo no seu blogue, eu termino ficando famoso! Rsrsrsrs

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  2. Às ordens, poeta.
    E parabéns pelo texto.

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