terça-feira, 23 de novembro de 2010

Texto de Roberto Menezes

A Fragrância dos Loucos


Outra vez sentado aqui, de frente a essa mesa de aço enferrujada, começo a repetir a história que por mim já deveria estar enterrada a sete mil palmos subterrâneos, sob mil camadas fósseis. Hoje mesmo já repeti duas, quatro vezes, não sei. Nem sei mais, na dormência do catre, se hoje é mesmo hoje, ou ainda é ontem ou se já será amanhã. A passagem do tempo, há muito, converteu-se numa linha enroscada. E o ontem antes do hoje que vem antes do amanhã, não mais me é lei áurea, como tantas leis que eu seguia até agora há pouco. Agora há pouco faz tanto tempo. Nesse enredo repetido, as palavras que não se repetem são as que mais me atordoam. No fundo é uma nova história a cada vez que conto, inédita, novíssima. Só algumas palavras trocadas de lugar concedem a ela esse selo. Também me aterrorizam as palavras não ditas, os pensamentos recém formulados de sinapses fajutas por neurônios raquíticos de um alcoólatra inveterado.

Outra vez vêm vocês com seus gravadores, suas virgens fitas cassetes de olhos arregalados que me exigem pressa, não param de girar em impaciência. Impertinentes. Que me editem, para que o que eu digo lhes caiba aos seus modos, suas intenções. Que me parafraseiem, que me contradigam em editoriais, em crônicas, em mesas redondas, em ensaios. Eu não tenho pressa. Daqui tão cedo não saio. Se quiserem ir, podem ir. Já é fim de tarde. O silêncio da noite uma hora vem, com vocês aqui ou não. A noite, meus caros, é a mãe dos cansados e a puta dos afoitos. Já fui ambos por esses metros de anos que agora parecem mais um grande tapete vermelho que me trouxe até aqui. Nos meus livros nunca deduzi tão óbvio personagem com características tão peculiares, com ações, classicamente, similares a mim. E coube a mim desenhar este roteiro sem fim exato, como é a noite para o afoito.

Outra vez, eu retorno ao marco zero (Até ali, vivia suave, sob o cheiro das rosas que regava durante o dia). Retomo o ponto onde ela me abordou, assaltante. Mulher separada. Dona da própria noite. Dormia tarde, acordava cedo. Tinha carga genética que naturalmente sobre todos impunha poder. Sílvia Rodrigues, advogada com três celulares, mulher de pele dourada, boêmia. Não ficava bêbada por nada. Vodca pura, bebia – sem os mimos do gelo. Mulher separada, de sapatos altos ficava mais alta que eu. Preferia quando ela os tirava. Nessas horas, com ela ao meu nível, eu lhe parecia um pouco menos inferior. Defendeu a minha causa do mesmo jeito que a presa protege a cria se doando ao predador. Mesmo assim perdemos, mas Silvia Rodrigues quis recorrer. A persistência também é algo genético, pois por mim, a merda da editora poderia publicar minhas poesias da maneira que ela achasse melhor. A essa altura estava pouco me lixando para elas. Só concordei com Silvia desejando tê-la por mais uns dias, entre duas ou três reuniões, entre três ou quatro goles de vodca tomados em horas felizes, entre quatro ou cinco toques inoportunos de celular. O que falávamos? Essa é uma boa pergunta: o que um poeta sem rima e sem rumo conversaria com uma advogada atarantada com situações cíclicas seculares de seus celulares? Me lembro que a nossa primeira conversa fora do assunto do processo foi sobre Saladino e as invasões árabes, sobre as cruzadas. Atacamos a burra fé cristã. E já que estávamos falando de religião, passamos para a política e em menos de um quarto de hora chegamos ao ponto que a ambas as partes interessava: o sexo. E lá, estávamos em casa. E o sexo logo veio. No dia que, vitoriosos, ganhamos a batalha contra a editora, ela se interditou do mundo, desligando os infelizes telemóveis. Comemoramos juntos, em par, secamos copos de vodcas e cansados, encaramos a noite, afoitos. Querem saber, senhores, naquele dia fiz de tudo com Silvia Rodrigues, até broxei. Quem não broxaria defronte a sua volúpia dissimulada por detrás dos tafetás da OAB. Senhores, Silvia Rodrigues foi o porto com faróis acesos onde estacionei minha velha corveta de navegador.

Amor? Eu não amava aquela mulher, já amei dezenas, mas não a Silvia. Apenas um medo doido e submisso e uma curiosidade amarga me apoderavam quando Silvia estava por perto (e longe também). No outro dia, nos despedimos, sem adjetivos, só alguns futuros do pretérito sem compromisso. E ela se perdeu pelas páginas preenchidas de horários marcados. Fui a Londres dar palestras em faculdades e visitar amigos, antigas amantes. Teve uma hora quando anoitecia, lá pelo meio da tarde, que me indaguei o que fazia ali. Quantas vezes havia ido a Londres? Quantas vezes tinha dado a mesma palestra sobre sei mais lá o que? Quantas vezes tinha visitado os antigos amigos que nem eram amigos de verdade? Quantas vezes havia amado aquelas antigas amantes? No fundo, via em Londres a minha rota de fuga predileta, mas agora tinha Silvia e para ela voltei. Marcamos um cinema urgente. Ela atrasou-se, desculpou-se. Bebemos mais vodca no bar mais próximo. Deixamos o novo de Wood Allen para quando saísse em DVD. Desaparecemos mundo afora dentro de nós. Sabem quantas poesias fiz para aquela mulher? Nenhuma! Ela não merece nenhuma poesia. Ela queria meu beijo, o arranhar da minha barba, o meu suor, o meu sêmen sobre o seio rubro.

Gostaria de dizer que deixei de ser poeta desde o dia que avistei Silvia, mas poesia é como gripe, não se cura. Apenas parei de compor depois dela e do que ela me trouxe (um furacão de proporções caribenhas fez-se meu inquilino). E como todos sabemos: com palavras sortidas sobre papéis brancos, um primata bem adestrado, que já visitou Londres com alguma freqüência e que tenha um amigo revisor pode melhor escrever essas poesias que me fizeram fama e terá uma boa chance de sucesso se contratar um competente assessor.
Vejo vocês atônitos com minhas frases cheias de simbolismo que lhes parecem não ter nexo. Vocês jornalistas são uma graça, mas entendo. Até posso presumir o que lhes passa pelas cabeças axiomáticas. Eu, com meu papo de poeta de meia-idade, que depois do décimo livro e da terceira antologia enlouqueceu. “Todo poeta tem a fragrância de louco”, esse aforismo foi um dos meus primeiros versos. Néscio, eu, quando escrevi. Achava-me estupidamente original na minha inexperiência desbarbada, se é que até hoje alguma barba nasceu nessa cara árida. Nunca havia experimentado da loucura, e ela começou a me contaminar, senhores, numa sexta-feira que, por muita pressão e insistência de Silvia, coloquei gravata verde-guarrafa e um terno preto alugados e fui a uma formatura.
Um cigarro, alguém tem? Só um trago. Tento parar todo dia, sabe? Silvia detestava quando eu fumava dentro do carro dela, me chamava de louco. Não é assim que vocês me chamam nas páginas dos seus jornais? Todos adoram me chamar de louco. O promotor, que diz me defender, queria usar esse argumento no seu processo. Dois médicos me consultaram e também ficaram na dúvida. Um disse que sim, o outro que não. A única pessoa com absoluta certeza de que não sou é Silvia. E com ela não terei chances de argumentar nada sobre minha falsa loucura. Com Silvia na acusação, já estou condenado. Uma profusão de sentimentos contra minha pessoa faz sopa no coração intolerante de advogada. Sabem do que tenho mais medo? Do olhar genuinamente sem piedade de quilhotinadora que me condena a séculos de sofrimento fortuito. Aquele olhar de louca é o que me aterroriza. Posso garantir que de louco não tenho nada. Tenho apenas a falta de sorte, a infeliz falta de sorte de seguir na relação com Silvia. Em tornar sérios os encontros casuais regados à vodca e sexo. Que posso fazer? Era uma mulher convincente. E bota convincente nisso! Para colocar terno e gravata foi preciso muita persistência, paciência e extorsão.
Lá estava eu: do seu patamar, ao lado dela, nervoso, sem poder fumar em meu próprio carro, indo para a formatura dos dois filhos dela que nunca tinha visto antes. Confesso que me assustei com a situação. Sempre tive uma relação complicada com essa nova geração. Sou filho único – nunca tive sobrinhos. Minha semente sempre terminou em abortos caseiros que minhas amantes, pressionadas ou por decisão própria, vieram a fazer. Hoje acredito que o tempo, melhor juiz, me esterilizou. Quando esses menininhos com suas mochilas pré-vestibulares, mascando chicletes de canela sem açúcar passavam por mim, eu via fetos ensangüentados ambulantes, e era assim que eles seriam se eu fosse pai deles: fetos ensangüentados jogados em terrenos baldios dentro de sacolas de supermercado. Em suma, meus caros, não nasci para ser pai. Se ser pai fosse bom, teríamos dezenas de filhos. Nós homens somos egocêntricos e em qualquer situação queremos o imediato prazer. Se filhos fizessem bem, teríamos centenas.

Agora vejam: eu, poeta sem prole, marginal para esses assuntos familiares, vestido a caráter para a formatura dos filhos de Silvia. Eles tinham pai, e moravam com ele, e apesar disso Silvia persistia em minha aproximação. Só depois vim saber o motivo, que nem os próprios filhos sabiam: o ex-marido, o arquiteto argentino Julio Alfonso, padecia de câncer sem cura e, a curto prazo, a fatura seria o estorno dos dois para Silvia. Talvez fosse por isso que ela andava tão ranzinza naqueles dias antes de rever os filhos. Demoramos para estacionar, e a cada vaga que eu perdia, ela batia no painel do carro quase na iminência de acionar o air bag. Se ela estivesse na direção, seria diferente. Ser bom motorista também deve ser genético. Ao entrarmos no ginásio, nos deparamos com uma peste de beca. Vozinhas agudas secundaristas, peles róseas, cor de jambo, negras, fetos sobreviventes. Eu me vi ali, no corre-corre da minha estréia, nesse tipo de festa de despedida. Tinha de todo tipo, como em uma comédia clichê norte-americana, e os filhos de Silvia poderiam ser qualquer um deles, poderiam me abraçar cheirando a sabonete Fofo e me chamar de papai. Não sou cardíaco, mas há o limite.

Eu suava, queria uma vodca – algum verso russo. Silvia se perdeu no fluxo estudantil, na busca dos filhos. Andei ziguezagueando à procura de um canto, uma sombra. Desci as escadas dos fundos. Ia fumar meio maço a sós com a brisa, mas no meu cantinho que presumi existir, a brisa já era confidente de um rapaz magricela. Fumava sentado com as pernas encolhidas e a coluna arqueada. Assim mesmo fiquei. Ele me olhou indiferente, me achou passageiro. Pedi fogo. Ele me deu o cigarro que fumava e pegou outro. Garoto magro, quase raquítico, lábios cor-de-rosa, na mão canhota, uma BIC. No colo, um caderno sovado de anotações. Tentava escrever versos na folha em branco ainda. Era canhoto como eu. Pegava na caneta do mesmo jeito que eu. Não puxei conversa. Só fiquei fumando do lado dele, compondo catálogos das constelações. Super Nova. Aglomerados de estrelas. Cometas e estrelas cadentes invisíveis. Calados, paralelos, como um dia sonhei fazer junto ao meu pai quando era menino. Fiz isso, só que um dia desses, em seu leito de morte, fumamos juntos, calados, paralelos, assistindo a uma reprise de Robocop. Esvaziei o tabaco desapressado, sem fissura. A luz do cigarro dele se extinguiu primeiro. Apontei o meu que não acendi, ele mudo negou. Tirou a tampa da caneta, mordeu os lábios e escreveu sob meus olhos: “Todo poeta tem a fragrância de louco”.

Desde quando o vi embaixo da fumaça de cigarro, reconheci a mim mesmo há trinta e tantos anos atrás: cigarros e canetas em punho, que se fudessem o mundo e as instruções e precauções dos manuais para vida. Cabelos negros, escorridos até os ombros, poucas espinhas, muitos cravos, mordidas nos lábios ansiosos, coluna em C, calças que cabiam em dois. Escreveu satisfeito, tal qual eu. Narciso, me vi em um espelho aprimorado, uma versão melhorada do que acho que fui. Não o imaginei como um feto sobrevivente. Senti dele, gêmeo.

“Vejo que se conheceram”, Silvia me surpreendeu em minha fantasiação. “Nunca tinha percebido o quanto vocês são parecidos!”, eu ainda estava entorpecido. “Vamos, vai começar”. Por mim, não sairia tão cedo dali. Seguimos calados, eu com meu cigarro apagado e Silvia abraçando Marcos com seu carinho inadimplente de mãe ausente. Marcos era o nome do menino que erroneamente achei ser igual a mim pleno.

Quando a cerimônia terminou, fomos todos comer pizza para comemorar a formatura dos dois. Ah, sim! Além de Marcos, havia Márcia. Olhar de leoa. Tagarela. Competia com a mãe pelo título de quem mais tempo falava nos celulares. Quando Silvia me apresentou a ela, Márcia sorriu e escondeu a língua com a arcada dentária gradeada por aparelhos ortodônticos. Não foi paranóia, mas ela me comeu com os olhos. Comi duas fatias de pizza de rúcula com tomate seco e molhei a garganta com vinho português. Eu ainda tinha que bancar o interessado no papo de arquiteto do pai dos garotos. Futuro defunto, ele estava obstinado a me explicar as mensagens subliminares de cunho comunista escondidas na planta piloto de Brasília. Naquele maçante final de noite, até Silvia calou. Voltamos de Brasília no outro dia mesmo. Antes, dei um livro meu a Marcos. Dediquei: “constituição da república dos loucos”. Ao ler, mordeu o lábio apreensivo. Havia gostado. Eu também mordia os lábios quando ficava nervoso. Minha timidez me impedia muitas vezes de agradecer os mínimos favores. Senhores, minha má educação é apenas uma forma de proteção. Marcos folheou as páginas curioso. Lamentei. Pouco ele ia entender das minhas poesias. Quanto à Márcia, mantive distância e só relaxei quando caí com Silvia na estrada e pude, enfim, tomar uma dose dupla de vodca.

Voltei para minhas palestras e oficinas. Silvia, para os seus processos. Nos encontramos com mais freqüência. Eu sempre estava livre na hora que ela queria, para o que fosse. No fim de seis meses, fui morar na sua cobertura de quatro quartos a poucos metros do mar. Confesso que o que mais me seduziu foi o espaço vazio em sua biblioteca. Lá eu poderia depositar meus valiosos livros. (A desgraçada queimou eles todos quando eu vim para cá. Imperdoável.) Chegando lá, vi que não só a biblioteca era um vazio, mas todo o apartamento. As duas empregadas andavam sempre discretas, cochichavam nas dispensas, entravam e saíam de modo que mal eu as via. Eu começava a caminhar nos trilhos. Criei hábitos caseiros. Nas poucas vezes que saía, andava na orla com a cabeça em outros lugares. Quase sempre preferia apenas me chegar à janela da cobertura, aliado a uma dose de uísque em gelo, com a luz ambiente e o som do CD à meia-luz. Em larva, como se aguardasse por algo que estava certo de logo acontecer.

Escrevi, certa vez, um conto sobre um comandante de um navio à deriva no vento, perdido em um oceano epopéico. Estava desesperançoso de novas terras, pressentia que o vindouro destino não traria salvações. O comandante, simplesmente, livrou as velas dos ventos bufões e deixou-se levar pelas lentas correntezas. Supunha que assim fosse viver com seus marujos para sempre em um quadro expressionista. Infeliz suposição. O destino da embarcação foi determinado ainda no porto, na praga rogada pelo cigano de dentes podres ao capitão que levou o seu dente de ouro ganho numa aposta de bar. E esse destino segue com o barco quando ele levanta âncora em planos de bordo secretos tatuados nas salas de máquinas ou nas caixas de peixes charqueados nos porões. Com meu uísque, rigorosamente nem aí por novas terras, não vi quando meu barco foi jogado às pedras, nos arrecifes de corais, ao canto das sereias, sem a proteção dos orixás. Depois do arquiteto argentino finalmente ceder a vaga no planeta, Márcia e Marcos foram reembolsados no primeiro vôo. Ocuparam os quartos vazios da cobertura. Para Silvia, tanto fazia, pouco pisava em casa, sempre havia a reunião inadiável, a viagem com pernoite ou de inteiro fim de semana. Estando os filhos em casa, ou em Brasília, para ela tanto fazia. Enquanto para mim, senhores, o que posso dizer?

Tudo que falei para vocês até agora foi mera introdução. Quis lhes proporcionar um esboço de quem era eu até ali. Prometo ser sucinto em meus comentários. Muito do que contarei já foi estampado em seus jornais. Apesar de bizarras distorções, o plano geral muito se aproxima da verdade (mas não é), se é que a verdade serve para alguma coisa a essa altura. Eu poderia dizer que era mentira meu interesse pelo piercing tribal na língua de Márcia ou pela verde melancolia de Marcos, mas se eu dissesse, agora sim estaria faltando com a verdade. Foram essas duas coisas a razão dos meus passeios sem pressa pela orla e pelas horas em silêncio de coma na cobertura, ao som baixo de álbuns clássicos. Não vou mentir que quando vi os pêlos pubianos a depilar transpassando o assanhado shortinho que Márcia usava caprichosa quando sentava na cadeira alta do balcão da cozinha ignorei, como deveria. Ela me sufocava com goles de libido, serpenteava a língua no copo americano com suco de laranja. Sempre fui vidrado nas pequenas. Queria meter a boca inteira entre as pernas finas, fazer Márcia ficar de ponta de pés, fazer ela beber aquele suco de laranja matutino de um único gole. Um único e sufocante gole de gozo. Pernas depiladas. Batatas torneadas. Ou eu cerrava os olhos, ou me entregava de boca aberta. E toda manhã eu me cegava ao tesão. Voltava os olhos para o jornal em minhas mãos que tremiam. Estava certo que se elevasse o olhar novamente, a bunda pequena e durinha estaria ainda mais arrebitada querendo minha língua. Ficava assim, até que um dos celulares gritasse acorrentado ao carregador no quarto. Ela corria, atendia e por lá ficava.
Marcos, indiferente a tudo, comia queijo quente com o inseparável caderno de anotações. Silvia chegava ao pé da madrugada (quando chegava), cansada, exausta, mas sempre reivindicando os meus favores. Sexo rápido, objetivo, útil, fulminante. Algum de vocês pode me perguntar como um cara que tinha a toda poderosa Silvia Rodrigues na cama foi fisgado pela petulância adolescente de Márcia. Talvez no fundo o que eu quisesse com Márcia não fosse o sexo em si. Algum desvio psicológico? Tara de um homem de meia-idade? Acho que não. Nunca me interessei por lolitas, anitas, paquitas, chiquititas de periquitas fofinhas e pequeninas. Era instinto o que perturbava o meu cérebro. Queria ver o resto dos pubianos, além dos sobressalentes. Sentir o encaixe do seu peito na minha mão. Ouvir o seu gemido de prazer quando eu puxasse seus cabelos curtos com força. Era mais do que sexo, era um experimento. No fundo, queria voltar a ser o adolescente curioso, mas sem os medos e as apreensões dessa época. Queria ser vil, dominante, analítico. Sentir Márcia em carne viva, sem poesia alguma. Havia cansado de relacionar as mulheres às deusas, amazonas, heroínas de peitos expostos em reinos fantásticos. Via Márcia como um toco de madeira que merecia ser talhado.

Os dias, então, iam passando em ciclos que me enfraqueciam, sempre com Márcia para mim em uma bandeja oferecida e sempre com Marcos alheio em perdições. Até que teve um dia, ano passado, quando eu tomava meu uísque na janela noturna de frente para o mar, ela chegou e me perguntou como era ser jovem nos anos setenta. Foi uma pergunta intrigante, tanto que me surpreendeu a ponto de não emoldurar as palavras. “Me conte como era um mundo quando não tinha AIDS, de sexo livre, do lenço sem documento. Rolavam orgias nos porões da ditadura?” Até aquele momento, as únicas palavras que tinha dado com Márcia eram obrigado, de nada, bom dia, boa tarde, passa a margarina. Aí veio ela com uma história de orgias nos porões da ditadura. No tempo dos generais, nunca escrevi textos subversivos. Até com prêmios estatais fui agraciado, porém vi de perto a mão ferrenha e peçonhenta dos militares. Soube por torturados e torturadores o tipo cruel de orgia que (desen)rolava nos porões.

Agora percebo que a técnica com que Márcia me abordou é bem digna da mãe. Fiquei qual gato encurralado, catando palavras de meu vocabulário esparramado no chão. Restou-me um sorriso enferrujado que sem muito esforço transformou-se numa inusitada gargalhada. Uma gargalhada das que por muito não havia dado. Com a mãe, antes precisei ir aos mouros, cruzadas, religião e política para só aí ir ao sexo. Márcia foi logo ao nervo. Decerto sabia das minhas incursões homossexuais setentistas que num desânimo da bebedeira confessei a Silvia. Os vícios ao quais tinha submetido os meus porões. “E aí? Me conta das orgias que rolavam nos porões.” Mostrei com uma ereção rápida e penetração aguda as orgias que minha consciência fazia por meses nos porões de meu cérebro. Ela nem teve tempo de gemer, pois após uma breve perdida de fôlego, havia gozado. Ela se sustentou com suas unhas em minhas costas, prendeu com as pernas minhas coxas, gritou-me baixinhos aos ouvidos: “Mais! Mais! Mais!” Obediente dei, como Deus a um devoto. Mais do que ela pediu, mais do que ela supunha que eu pudesse dar, mais do que cabia em seu corpo magro. Nunca me senti tão rígido; veementemente, dono da situação. Ela, objeto, contente pela graça alcançada, avermelhava-se com sentimentos recém-descobertos. Oscilava cansada o abdômen, do púbis até o plexo solar, feito uma serpente. Me perdi contando as costelas expostas. Quando gozei, ela apertou-me, se aproveitando o máximo de mim. Me diverti com os espasmos dos orgasmos. Bebi o uísque feito água, e quando percebi ela não estava mais lá. A safada, do mesmo jeito rápido que chegou, escafedeu-se para o seu inviolável quarto. Para seus celulares, MSNs da vida, tal qual a mãe.
Assim abriu-se a temporada de fodas, gemidos e gozadas no começo da noite. Até emagreci. Minha cintura ficou mais estreita, meu fôlego mais sustentável. Quando Silvia me perguntou o que eu andava fazendo, inventei algumas corridas vespertinas. Márcia era insaciável, não tinha dia ruim para ela; até menstruada, comparecia. Nos dias singulares em que a mãe chegava cedo ou não ia trabalhar, se emburrava e nem para minha cara olhava. Ficava no quarto exilada da mãe indiferente. Quanto às empregadas, nada como uma coação e um suborno como caução. Tinham tudo a perder se contassem. Tinham jugulares para proteger e lares para sustentar. De Aquiles, frágeis calcanhares. E todo dia havia sexo, álcool e nenhuma poesia. Deixei a poesia para Marcos.

Teve um dia que sonhei que ele nos observava, escondido por trás da cortina. No sonho, ele se masturbava com os olhos arregalados, buscando, cientista, os detalhes confundidos pela meia-luz, e quanto mais forte eu cavalgava no corpo sedento de Márcia, mais ofegante eram as repetições manuais em seu pau. Como se ele a mim masturbasse, como se ele a Márcia fudesse. E depois de gozar, com os olhos alagados do choro contido, tentava com o sêmen escrever no surrado caderno de anotações o começo de algum poema, mas nenhuma letra surgia, apenas borrões beges de esperma. De olhos esbugalhados, o rapaz não se contentava com isso, desejava ver a poesia do após gozo. Marcos insistia, e posso dizer a vocês que eu também compartilhava do após-gozo de Marcos. Um calafrio. Uma vontade desgrenhada de me perder, de morder a pele de seda de Márcia com o gume dos meus dentes e arrancar-lhe a carne, nervo, cartilagem. E no sonho, Marcos insistia. “Sangue!”, começa a gritar por trás da cortina. O engraçado é que, eu, com a visão de Marcos me via engatado em Márcia. Arranhava o seu corpo passando de viés as unhas mal cortadas de rapina. “Sangue”, ele gritava. Sangue, ele queria. Completaria a lacuna da ausência branca de sentimento no papel, nem que imolasse sua irmã por esse bem maior. A imagem de seu rosto que, na penumbra, era meio meu meio dele era tão bizarra quanto admirável e deliciosamente libidinosa. Acordei desse sonho com uma plúmbea ereção. Como se ter, corrijo, como se e somente se a única maneira de ter o todo era agarrar os extremos. Na ilação simplória e infundada de que os fortes veneno e remédio findassem com a ojeriza e o asco melindroso que me amedrontam desde que me conheço por gente.
Silvia, a mil léguas, não esquecia do cheque para as despesas e os salários da criadagem. As contas aprenderam a se pagar por conta própria em débitos automáticos em conta corrente. Foi isso também que se tornaram minhas incursões diárias em Márcia, um débito automático em conta. Apesar de meu corpo estar lá, minha mente estava no sonho, no desejo de Marcos de escrever com o sangue da irmã a poesia por mim toda vida ansiada.

Senhores, nesta hora em que a história se encaminha para o fabuloso desfecho, dou uma pausa para que vocês façam a estratégica virada de cassetes, para a troca de carga dos modernos e compactos MP3´s, para que possam enxugar as testas suadas, para que possam exorcizar a carga excedente que mantém tensos os vossos pênis nas vossas apertadas cuecas. Todos vocês, tal como eu, são uma matilha de pervertidos. Fariam de tudo para viverem o que passei. Mas poucos são ofertados com tamanha honraria como eu fui. Logo para vocês chegará a velhice e então serão agraciados com dois presentes: câncer ou Alzheimer. E mais nada! Assim vocês viverão os últimos com o terror iminente da morte ou eternamente continuarão vivos sem disso saber. Esses serão os presentes com requintes de crueldade que a vida irá lhes oferecer. A mim prato precioso foi oferecido sobre bandeja prateada, e dele aproveitei. Vocês bem sabem o quanto me aproveitei. A excepcional iguaria era rodeada de todos os sabores, do doce extremo doce, ao insustentável azedo, sem esquecer do salgado inflexível que fere minhas aftas e do intrigante amargo, o de maior sedução.

Essa mistura clichê de prazer e dor se aprofundou mais quanto mais perto estive do fim. Não que isso um dia teve fim. Estando eu na frente de vocês, escrevo novas linhas dessa história. Linhas fúteis como essa agora, como fúteis foram as dezenas de resmas de anos rumados por mim. Finalmente entendi o conceito de não linearidade, de ter os sabores do mundo em uma empada e um monte de nada em toneladas de ração. De que a vida não é o soletrar dos anos, e sim o dissecar dos segundos. Cansei de tentar entender metafísica, os dogmas cristãos e as letras das músicas de Jorge Ben. Cansei de esperar o meu tempo de câncer e de Alzheimer. Fui à luta, ao fronte em pêlo, apelando pela chuva de balas da artilharia, pela poesia em sangue sonhada por Marcos em meu atraente pesadelo.
Era sábado, fim de tarde, garoa. Silvia no escritório, Márcia com as amigas, shopping, praia, sei lá. Meu uísque, fiel escudeiro. Eu ouvia bem longe a narração do futebol. Imaginava os passes, os dribles, os gols. De fundo, batidas das ondas do mar. Em sonho, nem notei quando Marcos chegou.

Não posso assegurar quanto ficou parado ao meu lado, mas quando o percebi, estava paciente. Esperando por minha atenção, na verdade, como sempre esteve, eu que não o enxergava por trás das cortinas dos cômodos. Ele me olhava imóvel. “Li tudo e tudo entendi”, fuzilou-me. “Falta a você coragem…”, continuei parado. “…e a teus poemas, sangue.”. Eu poderia escrever trinta e cinco mil páginas sobre o que senti naquele instante. Mil milhares de livros. Uma infinidade deles. Poderia agir de todas as possíveis maneiras para com aquilo que soava como qualquer coisa, menos como uma agressão. Escolhi a menos óbvia (ou a mais, se desejarem), beijei-o.

Não se espantem! Beijei-o, sim! E ele retribui-me com sua carne. Com o corpo e com o espírito apostolicamente o possui. Ou foi ele que dentro de mim adentrou? Pensando agora, vejo que tanto fazia, no anoitecer de sábado. Se houvesse algum espelho ao redor, veríamos só um, um só completo ser. Uma mistura de fluidos e sais misturando-se entre nós, selando-nos. Nossas bocas eram estuários onde o caudaloso rio de viço desembocava profuso. Desdenhei dos meus preconceitos, medos, conseqüências, do que os outros poderiam. A cada abraço, éramos incestuosos irmãos. A cada abraço, éramos impetuosos inimigos. Definhávamos de dor, inflávamos de paixão súbita. Nosso idioma eram gemidos, gritos de apertadas possessões. Com nossas línguas em chicotadas lânguidas, mutuamente nos percorríamos. Implorava e concedia, eu a ele e ele a mim. Presenteamo-nos com cusparadas nas faces, socos nos queixos, roubamos um do outro tufos de pêlos colhidos pelos incisivos. Arranhamo-nos com cócegas. Como crianças, inventamos brincadeiras. Coisas eu escondia, para ele encontrar. E para tudo tínhamos prêmios e punições. Criamos uma particular república e a sua bandeira ao vento hasteamos. Dos loucos, república. Carinhos por séculos predestinados para aquele pontual momento. Sábado de futebol e garoa, de uísque diluído em finados cubos de gelo dentro de um copo por essência vazio. Emaranhados. Enlaçados. Incrustados. Alinhavados. Com ele, me remendei. Comigo, se remendou. Nenhuma sobra sequer sobrou. Era apenas um – eu nele, ele em mim. Uma nova espécie de ser, um poeta por completo, cheio de coragem, e sedento por poesias repletas de sangue. E foi aí que Márcia no quarto entrou.

As algemas dos que me prenderam estavam de um jeito tão apertadas que quando recobrei a consciência, a pele do punho estava rasgada. O sangue minava da frustrada nascente. Estava escuro. Os ossos da face doíam também junto aos dentes que me sobraram. Dois policiais me encaravam do lado de fora da viatura, me receberam da inconsciência com um telefone em meus ouvidos. Que péssimo era aquilo. Meu mundo reverberava com sons daqui e do além, da recém memória ainda mal elaborada. Vomitei nos pés deles, em suas botas lustradas e mais dois telefonemas levei. Naquela noite fui submetido a uma espécie de exorcismo policial. Socos. Gritos. Choques. E muitos outros telefonemas. Queriam que eu confessasse uma coisa que os fatos me entregavam de bandeja, a mesma bandeja de prata que dezenas de vezes me entregou Márcia.

Não sei exatamente o momento em que perdi a consciência quando eu estava no quarto com Marcos e Márcia. Não sei o que aconteceu depois disso. Mas afirmo, sem apostos, que não matei Márcia. Não nego que tive essa intenção, na anarquia do fim de sábado, mas em hipótese alguma matei aquela garota… Essa risada de vocês não me aflige mais. Estou certo do que vi e do que fiz. Isso a um homem basta: a certeza de sua inocência.
Silvia, que me acusa nos tribunais, nunca mais a mim dirigiu sua palavra. Compôs o seu processo de acusação com sangue, com sangue no olho, com ódio de morte. Do que tenho mais medo hoje? Fácil essa. Do momento em que estarei frente a frente com ela. Estando aqui preso, me sinto seguro. Ficar aqui enjaulado para sempre não me é de todo fim. No ócio escreverei grandes poemas, lerei os clássicos volumosos, receberei extratos das minhas editoras (sabiam que nunca vendi tanto. Todos querem ter algo de mim). Rápido os anos passarão e pela porta da frente de qualquer penitenciária sairei. E sabe quem me receberá? Vocês! Vocês e dez, cem de vocês. Voltarei às capas, viajarei a Londres onde visitarei velhos amigos, farei novas amantes. Mas antes de tudo irei pôr rosas no túmulo de Márcia. Ela merece.

Por que riem? Eu estive lá. Vi o que Marcos fez com ela, como ele a estrangulou, arrancou-lhe a pele com os dentes, comeu suas orelhas, o nariz, os mamilos, a ponta do queixo. Como ele bebeu o sangue e como, com o resto, preencheu o piso, o teto, as paredes e as vidraças com perfeitos versos (vocês viram nas fotos). Não notei dor na morte dela. Márcia se deu! Por isso merece minhas rosas.

Às vezes imagino que tudo foi combinado entre os dois e eu fui apenas um mero objeto desse majestoso sarau. Marcos escrevia nas paredes com o corpo inteiro, batia a cabeça com os dentes, que iam trincando, trincando, até que quebravam. Também era minha a dor que ele sentia. Só um de tantos prazeres que deixavam imóveis meus membros, me cegavam a razão. Não me atrevia conter tamanha obra messiânica. Era incalculável minha excitação. Sufocou-me a um patamar que meu corpo de quase velho não suportou e, sem apelos, apaguei.

Hoje sinto muita falta do uísque diário dos fins de tarde, de saber que Márcia sempre viria e a teria, de saber que em algum canto da sala, Marcos lia e entendia os meus versos e talvez nos espreitasse por trás das cortinas. Marcos desflorou uma parte de mim que eu teimava em amassá-la, mas isso não tem que possam sustentar por muito tempo.
Hoje sinto falta do uísque vespertino e de Marcos. Gostaria de vê-lo só mais uma vez. Sei que, aonde ele estiver preso, em mim estará pensando. Precisamos um do outro. Pena maior é esta nossa separação. Espero que sua pena seja branda, que logo lance seus livros. Aquele garoto tem um quê que eu nunca tive: a fragrância de poeta. É um poeta com coragem. Ele é um poeta de sangue, como todo poeta tem que ser.

Manuscrito encontrado sobre o corpo do poeta Gustavo Inácio Monte, morto em sua cela. Este é o único depoimento do réu, que por todo o processo manteve-se em silêncio. Seu suicídio deu-se na véspera de seu julgamento pelo brutal assassinato de Marcos Rodrigues de Santana, filho único da atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Silvia Rodrigues Leão.

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