domingo, 20 de fevereiro de 2011

Conto de Roberto Denser


BR 230[1]
Roberto Denser

            A porcaria do carro foi dar prego exatamente no trecho da maldita rodovia que mais o assustava: O Km 58. Meu Deus, pensou, sentindo-se nauseado, e hoje é o dia treze! Cinco mais oito também é igual a treze
            Tremendo, ele girou a chave na ignição com um pouco de esperança. A porcaria rinchou, peidou, se tremeu toda e não saiu do lugar. Ferreira sorriu.
            — Ótimo. É, é isso... Mas que merda!
            Ferreira era um homem supersticioso e bastante impressionável. Trazia em seu carro uma verdadeira exposição de amuletos e patuás – um trevo de quatro folhas como chaveiro, um pé de coelho e uma figa dependurados no retrovisor, um crucifixo no pescoço e uma Bíblia sobre o painel de instrumentos; para citar apenas alguns – Ferreira amaldiçoou a hora extra, hora extra que acabara por deixá-lo de plantão até o começo da madrugada. Agora estava ali, parado no meio do nada, sozinho, sem entender de carros e com o celular descarregado. Em outras palavras: Ferreira estava com merda até o pescoço.
            — Calhambeque desgraçado! — Ele socou o volante, fazendo um barulho com a buzina que o assustou.
            Um carro passou voando ao lado de seu fusca azul, se afastou e sumiu na escuridão da noite. Ele olhou o relógio e viu 00h59 se transformar em 01h00 diante de seus olhos quando subitamente alguém entrou pela porta do carona e sentou-se ao seu lado.
            Ferreira gritou: Sentado no banco do carona estava um homem, Deus, com metade da cabeça esmagada e todo sujo de sangue. Sua roupa tinha marcas de pneus e pequenos pedaços de uma coisa branca e molhada. Um cheiro de carne podre invadiu o carro.
            — O que está esperando? — Disse o visitante, tentando parecer simpático apesar de seu estado decrépito — Mete o pé na tábua, pô!
            Ferreira gritou de novo, tão alto que até seus ouvidos protestaram. Tentou desesperadamente abrir a porta do carro, mas não obteve sucesso.
            — Qual o problema? — perguntou calmamente o intruso — Eu só quero uma carona, tá legal, brother?
            Ferreira tentou falar, mas só conseguiu emitir um grunhido.
            — Vambora, vambora, vambora, meu irmão! Tá esperando o quê? Eu não tenho todo o tempo do mundo não!
            Sem falar nada e tremendo, Ferreira girou a chave na ignição e o carro pegou sem nenhum problema – como se nunca estivesse dado prego em toda a sua droga de existência –, ele engatou a primeira e foi em frente. Suas mãos tremiam enquanto agarravam o volante com força.
Mas que diabo!
            — Tá ligado que eu tô morto, né? — falou o carona, tentando puxar assunto — Me chamo Guga, e você é o Ferreira, o Ferreira é o que você é, é sim.
            — É... — Ferreira falou com a voz trêmula — Vai pra onde?
Guga deu uma gaitada.
            — E pra onde mais eu iria, cumpade, ao shopping? À boate mais próxima? Vá se foder!
            Ferreira engoliu em seco.
            — Têm cigarros? — perguntou o morto.
            Ferreira sorriu sem desviar os olhos da estrada.
            — No porta-luvas — ele estava começando a se acalmar — Eu estou tentando parar, mas acho que também vou querer um — E acrescentou: — Devia parar, isso pode matar você.
            Guga gargalhou.
            — Você é um cara engraçado, né? Eu gosto de caras engraçados. Mas Ferreira é um nome sério, não é pra você. Ferreira é nome de cagonildo, de cara que sofre de prisão de ventre e trabalha vendendo produtos magnéticos de porta em porta. Não é pra você. Seu nome agora será cara engraçado. É, é sim.
            Ferreira sorriu.
            — Por que está fazendo isso? — Perguntou para o vácuo.
            Guga abriu o porta-luvas e tirou uma carteira já quase no finalzinho de Free light.
            — Você fuma essa porcaria? Isso é cigarro de maricas, vá tomar no cu! — E jogou o maço pela janela.
            — Quero dizer, por que eu? — Ele estava quase chorando — Por quê?
            — Ah, num chora não, cumpade! Puta que pariu!
            Ele puxou uma carteira de Hollywood do bolso da jaqueta de lona preta e um isqueiro. Acendeu em sua boca rachada e suja de terra.
            — Toma, chorão — Fumaça saía pelo buraco em sua cabeça quando ele tragava.
            — Por que isso tá acontecendo?
            — Cara, esse carro é um lixo. Não consegue correr mais que isso não, hein, bacana?
            Ferreira irrompeu em um choro descontrolado. Estava nervoso, achava que havia enlouquecido ou que iria morrer. Uma urina quente desceu por sua perna, molhando o jeans e o estofado do carro.
            Guga arregalou o único olho que tinha, o outro não passava de um amassado ensangüentado e escuro sobre a órbita invisível, e gritou apontando para as pernas de Ferreira:
            — VOCÊ MIJOU NAS CALÇAS, MERMÃO!
            Começou a rir descontroladamente, pequenos pedaços de carne soltaram de sua cabeça desfigurada e deslizaram pela jaqueta de lona.
            — Cara, eu nunca tinha visto isso na minha vida! — Depois completou: — Nem na minha morte!  
            Ferreira respirou fundo e fechou os olhos, se acalmando e tentando fazer com que o seu novo amiguinho sumisse, provando para si mesmo que tudo não passava de uma alucinação causada pelo cansaço, mas assim que fechou os olhos, ouviu:
            — Que merda é essa? Olha pra estrada, caralho, você vai acabar nos matando!
            Guga uivava de tanto rir, para ele suas piadas eram as mais engraçadas do mundo. Ferreira achava que não.
            Eu devo ter dormido no volante e estar inconsciente em algum lugar perto daqui, com a cabeça sangrando e com um terço do carro enfiado em alguma árvore. Há-há, só pode ser isso.
Não era. No fundo Ferreira sabia que aquilo estava realmente acontecendo.
            — Que espécie de cara você é, algum babalorixá, pai de santo? — Perguntou Guga, olhando para os amuletos espalhados pelo carro.
            Ferreira engoliu a seco. Meu Deus, por que comigo, por quê?
            — Seguinte — falou Guga, e Ferreira olhou com o canto dos olhos —, eu vou ser bastante franco com você, cara engraçado, eu vim falar com você porque tenho uma missão...
            Mas antes que pudesse completar irrompeu em uma gaitada estridente que fez os ouvidos de Ferreira doerem. O defunto filho da puta estava morrendo de rir.
            — Eu sempre quis dizer isso, cara, que demais!
            — Pode crer. Muito demais.
            Guga olhou para a janela.
            — Relaxa, não vou te incomodar por muito tempo, estamos quase chegando.
            Ferreira tentou lembrar onde exatamente estava indo e chegou à conclusão que não fazia a menor idéia. Resolveu perguntar.
            — Você não me falou para onde estava indo.
            Guga jogou a bituca do cigarro pela janela.
            — Puta merda, é mesmo! — Ele bateu na cabeça e Ferreira pode ouvir claramente o barulho de uma coisa chacoalhando — Pare no próximo bar que eu vou lhe pagar uma cerveja.
            Ferreira sorriu e respondeu trincando os dentes.
            — Pode deixar, Gu-ga...
            — Que há, você não bebe?
            — Uma cervejinha de vez em quando.
            Guga pareceu satisfeito e se recostou na cadeira.
            Seguiram em silêncio por um tempo, Ferreira mergulhado em orações e Guga olhando a paisagem, até que ele quebrou o silêncio:
            — Pare ali antes daquela curva, okay?
            Ferreira não pôde acreditar.
            — Hã? Ali na frente? — Mal podia conter a felicidade em sua voz.
            — Mas é claro que é ali, mermão, tá vendo mais alguma curva?
            Ferreira meneou a cabeça afirmativamente.
            — Pare ali que eu preciso mijar — Completou Guga.
            Ferreira começou a rir. Quer dizer que defuntos mijavam? Filhos da puta!
            Freou o fusquinha azul metálico e esperou. Guga colocou uma perna do lado de fora e então disse:
            — Se tentar fugir eu te pego, tá ligado?
            Ferreira fez que sim, Guga desceu.
           

Ele não podia se conter. Pediu, com toda a fé que acreditava ter, para que tudo o que pretendia fazer desse certo. Olhou para o lado e viu o defunto filho da puta assobiando “A Ponte do Rio que Cai” distraidamente enquanto tirava água dos seus malditos joelhos podres.
Era a sua chance.
Sua única chance.
            Tremendo e acariciando o crucifixo do peito com uma das mãos, Ferreira deu partida no carro. Guga olhou para trás, Ferreira estirou o dedo médio pra ele e pisou no acelerador. Ainda teve tempo de ouvir:
            — Não faça isso, SEU FILHO DE UMA PU...      
            O fusca de Ferreira seguiu em frente o mais rápido que podia. Seu coração batia forte, suas mãos tremiam e ele repetia sem parar: obrigado, obrigado, obrigado, meu Deus! Olhou para o retrovisor e teve a impressão de ter visto o seu antigo carona com o polegar estendido na direção contrária, procurando outro “cara engraçado” para se divertir. Respirou aliviado, nunca saberia exatamente o que tinha acontecido. Ferreira abriu o porta-luvas e lembrou que o filho da puta jogara fora o seu cigarro.
            — Merda.
            Não tinha importância, pensou, só precisava se preocupar agora com o cheiro. O maldito cheiro de carne podre do defunto filho da puta!  


Roberto Denser
João Pessoa – 14 de Abril de 2001


[1] Originalmente publicado na antologia Criaturas do Escuro, do autor.
Denser é integrante do CAIXA BAIXA e mantén o blog http://www.robertodenser.com/

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