segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Artigo de Fábio Vieira


Augusto de Campos, poeta do carbono e do silício.

Fábio Vieira*
 

 
   
                                                              SOS (1983)





     
      Este poema foi publicado no livro Despoesia (1994) e recebeu versão digital em Não (2003) (http://bit.ly/ezDBUu). A motivação material do texto se processa em todos os níveis. Através do jogo de signos, acionado pela interação com o poema, multiplicam-se os significados e as sugestões de percepção. Um dos destaques é a imposição de outra forma de ver e ler. A espiral articula os estratos do texto em ordem de sentido não-linear. No primeiro instante e durante o percurso do texto torna-se inevitável a participação do leitor.
      O centro do poema é ambíguo, pode ser a vogal /o/, o número /0/ (zero), ou ainda o vazio: {O}.  Mas se tomarmos o poema como um conjunto de esferas, o núcleo da palavra “SOS”, passa a ser a redução de todos os outros círculos maiores. Condensação de vozes que percorrem um mesmo movimento concêntrico e interligado.
      No centro, um clamor de socorro rodeado de silêncio. Silêncio por todos os lados: sozinhos estamos em um vazio circular? Solidão concêntrica, disposta em um sistema de esferas, no qual a noite é isomórfica à página escura, e as palavras giram em torno de um centro vazio e negro. O reforço semiótico é extremo: em todas as esferas há a vogal /o/, o que pode sugerir que dentro de cada nível a voz está presente, mesmo que em silêncio: egO> sÓs> apÓs> sOl> nOite> vOz> silenciOsO> sOs.Ou, os sozinhos “sós” estão pronunciando “SOS”: socorro em muitas línguas? Sozinhos sem voz, vagando na noite sem luz, despatriados, sem saber o que fazer. O poema aponta para o centro de nós mesmos. Ou, dos “nós da gente”.
      Na versão em livro de 1994, não há a justaposição de vozes nem o movimento hipnótico dos sucessivos círculos em movimento, presentes na versão digital. Essa transposição para outro suporte foi nomeada por Julio Plaza (2008) por “tradução topológica-homeomórfica, quer dizer, aquela em que o poema original é transladado para um outro meio, sem mudanças significativas de suas configurações inerentes”.  No suporte gráfico, o poema pulsa de dentro, como uma rosa despetalada a partir de um vazio escuro. O poema sugere uma emoção de dor, baseada num pedido sombrio de socorro. Esses vários “eus” ( ich-io-je-yo-I-ego) estão “sós”. Tensionado em sentimento da raça, essa solidão é projetada pelo seguinte campo semântico: “sós, sem, noite, sem pai, sem voz, vagar, silêncio, socorro”. Não há esperança, porém o desespero é posto sem derramamentos emocionais.
      O que é difícil de negar é a presença de um lirismo, cuja plasmação regida por condensação e isomorfias musicais, ativa ampla rede de signos. O poema torna visível a materialidade desse “silencioso sos” quando age nas áreas visuais e musicais. Através do jogo sonoro, do movimento giratório, exporta para o audiovisual a ideia de circularidade e simultaneidade, apoiada na aproximação sonora entre as palavras.
      Há várias perguntas sem resposta ou que encontram o silêncio como eco. Há a sugestão de incomunicabilidade entre esses “eus” tão “sós”, lançados num tempo “pós” e projetados para “após”. O panorama que é colocado pelo poema aproxima-se de uma condenação, bem próxima de uma observação de Octávio Paz, ao falar da condição da poesia na sociedade industrial: “O árido mundo atual, o inferno circular, é o espelho do homem cerceado em sua faculdade poetizante” (Paz, 2003, p. 108).
      Augusto de Campos é um poeta multimídia muito antes da explosão dos meios e da cultura das mídias. Ele assimila antropofagicamente o aparelho tecnológico em sua lavra, na qual sensibilidade e pensamento não estão dicotomicamente dissociados. O desejo de mudar é alçado sob um solo textual baseado na condensação, na carpintaria verbal, na liberdade de procedimentos, no jogo entre música e artes gráficas. Em sua poesia, a intersemiose verbivocovisual está grávida de sentidos.

Referências

CAMPOS, Augusto. Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994.
______. Viva Vaia : poesia 1949-1979. 4. ed. São Paulo: Ateliê, 2007.
______. Não poemas. São Paulo: Perspectiva, 2003.
______. Clip poemas. (cd rom) In: Não poemas. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PAZ, Octávio. Signos em rotação. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2008.


*Fábio Vieira é autor de: Oriente ocidente através: a melofanologopaica poesia de Paulo Leminski (Ideia, 2010). Doutorando em Literatura e Cultura pela UFPB. Membro do Núcleo Literário Caixa Baixa. (Twitter: @ffabiovieira)

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