quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Texto de Félix Maranganha

Por Mares Sempre D'Antes Navegados

Para quem deseja escrever sobre o Oceano

Interessante como histórias de grandes navegações são recorrentes na cultura popular. Vez por outra aparecem, em algum século perdido da humanidade, histórias sobre um herói, um conjunto de heróis, demônios, monstros e lendas sobre seres que vêm do fundo dos rios, dos mares ou mesmo do espaço "profundo". É como se essa profundidade marítima fosse a profundidade de nossas próprias mentes, algo como uma "escuridão profunda" em uma mente coletiva, e que é peitada por gente comum como nós. De certa forma, segundo o psicanalisa alemão Carl Gustav Jung, é isso mesmo que ocorre. Nossa personalidade individual se desenvolve a partir de uma matéria-prima de pulsões coletivas da própria espécie, manifestas em forma de arquétipos, e o conjunto de manifestações individuais desse inconsciente coletivo é que forma a cultura.

Segundo Jung, um dos arquétipos de nossa personalidade é a Sombra, cuja origem é pré-social, mas sua estrutura é pós-social. Esse arquétipo seria como um baú de lembranças, onde guardamos tudo o que é inaceitável para nossa vida consciente. Todo instinto que é asqueroso, nojento, violento, pernicioso, destrutivo, ou que se repasse àquilo que é inaceitável no meio social, é armazenado nesse baú. Mas tudo o que está armazenado nesse baú somos nós, e não podemos deixar de ser, são nossos instintos, nossos desejos, nossas pulsões. São energias muito fortes, sempre liberadas em outros formatos como sonhos, artes e cultura popular. E cada século terá sua própria lista do que é bom e do que é ruim, do que se aceita e do que não se aceita. Já parou para pensar do porquê de o Diabo mudar tanto de figura através dos séculos? cada século deu ao Diabo um conjunto de malefícios diferente. Outra coisa interessante sobre a Sombra é que ela se manifesta quase sempre como água, elemento semiótico que, na psiquê humana, assume imediatamente o significado de algo sem forma, indefinível, capaz de assumir qualquer formato ou manifestação, como monstros, deuses, heróis e vilões.

No caso das histórias de navegações, seu sucesso se dá justamente por envolver uma manifestação dessa sombra em seus múltiplos formatos. Como é um arquétipo informe, então tudo o que envolve o oceano ou os rios torna-se uma aventura, ou seja, algo emblemático, misterioso, incrontrolável e imprevisível, e cruzá-lo é assumir um conjunto novo de possibilidades, não ter um caminho certo, como um mundo novo após um dilúvio, como nos textos sobre Noé ou Uta-Napishtin. Navegar sobre essas águas é uma forma de demarcar território, de dizer "aqui, mando eu", e de decidir pela novidade do que não pode ser previsto.

Nas epopéias clássicas greco-latinas, temos o exemplo da Odisséia e, depois, da Eneida. Na Odisséia, Ulisses, que quer retornar para casa, enfrenta o mar, atravessa seus perigos, e confronta sua própria sombra. O mesmo ocorre a Enéas. Ambos descem aos infernos, aproveitam os prazeres e reconhecem suas dores. Eles são, na psicanálise, os exemplos da viagem para dentro de si mesmo, como se deparar-se com aquilo que somos de fato lá no íntimo fosse necessário em nossa própria jornada. E, lá no íntimo, apresentamos uma riqueza que desconhecemos em nossa vida consciente e social. Interessante é que seu modelo narrativo, uma tradição discursiva sobre essa jornada pessoal, é encontrado também em outras culturas, algumas mais antigas que Homero, outras mais recentes, como podemos verificar em narrativas como A Epopéia de Gilgamesh, Simbad, o Marujo, e na literatura canônica, temos Os Lusíadas, de Luís de Camões, e Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne, e até mesmo alguns contos do Silmarillion, do J.R.R. Tolkien. No romanceiro tradicional podemos encontrar as viagens de Alexandre, as histórias de João de Calais e manifestações folclóricas como a Nau Catarineta. Na história, temos variações em terra, como as viagens de Marco Pólo, e personalidades históricas reconhecidas, como Éric o Vermelho, Fernão de Magalhães, Vasco da Gama, Batolomeu Dias, Cristóvão Colombo e muitos outros.

Outra variante das histórias de navegação são aquelas que envolvem tesouros amaldiçoados ou abençoados. É outro exemplo da riqueza que encontramos em nosso subconsciente. Bem utilizado ou bem compreendido, ele pode ser uma bênção, e mal utilizado ou mal compreendido, uma maldição. É o caso das histórias como A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, mostrando claramente que uma criança ou um jovem consegue compreender às vezes melhor que os piratas adultos aquilo que lhe é interno. O mesmo ocorre com histórias como Piratas do Caribe, em que o primeiro filme é emblemático nesse sentido, cujo tesouro mal compreendido torna os piratas em zumbis. E bênçãos e maldições podem vir em qualquer formato, a exemplo de Moby Dick, de Melville, e de O Lobo do Mar, de Jack London. Além desses tipos, podemos observar também as histórias de naufrágio, em que o indivíduo, com pouco conhecimento dos perigos e das bênçãos do oceano, é deixado em algum lugar perdido do mesmo, para assim aprender com suas próprias lutas sobre si mesmo. O naufrágio é um tema recorrente desde narrativas egípcias como O Eterno Triângulo, passando pela história do profeta Jonas e culminando em textos modernos como Robinson Crusoé e A Ilha do Doutor Monroe, além de filmes e séries como Náufrago e Perdidos no Espaço.

Falando em Perdidos no Espaço, há hoje uma profusão de criações culturais que identificam, cada vez mais, o céu e o espaço aberto como "o novo oceano", igualmente informe e misterioso, também emblemático, e ainda mais rico, chegando a ser infinito em sua profundidade. Assim podemos citar desde Volta ao Mundo em 80 Dias (ou Cinco Semanas em um Balão, numa tradução de título mais sóbria), escrita por Júlio Verne, que poderia ser comparada com um Ulisses voador. Jornada nas Estrelas é um exemplo de um universo sendo descoberto, e Guerra nas Estrelas é a antiga fantasia do controle desse espaço aberto. Histórias como as de Jack Vance e Arthur C. Clarke, de Fausto Cunha a Frank Herbert, são exemplos de como a estrutura se mantém a mesma, mudam a roupa e preservam o manequim, trocando a água pelo ar, e o oceano pelo espaço sideral.

Fonte: http://assassinador.blogspot.com/

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