sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Letícia Palmeira e seu coito interrompido

Mais uma mulher em setembro.

coito interrompido




não é o meu país
é uma sombra que pende
concreta
do meu nariz
em linha reta
não é minha cidade
é um sistema que invento
me transforma
e que acrescento
à minha idade
nem é o nosso amor
é a memória que suja
a história
que enferruja
o que passou
não é você
nem sou mais eu
adeus meu bem
(adeus adeus)






O número que você ligou encontra-se desligado ou fora da área de serviço. Deus é bom. Assim não caio na cilada de acreditar em abracadabra. Mas parece um imã. Há um magnetismo em tudo que causa perigo. O telefone está em minhas mãos. O número não sai da cabeça. Vou tentar de novo. Coragem, digo pensando, porque não há pecado algum em ligar. Não quero telefonar para pedir nada. Só quero saber se está tudo bem. Simples. Mas por que sinto vontade de querer saber se está tudo bem? De que me vale? Espanto pensamento racional autoajuda. Tenho coisas a fazer e não vou perder tempo. Preciso trabalhar e há tempos prometi visitar aquele amigo que agora não me faz diferença alguma. Porque nada faz diferença. Só a ligação e a vontade esquelética de perguntar coisa que não faz sentido é que faz diferença. Ligo de novo. Caixa postal? É um complô. Ou motim. Talvez seja deus finalmente me ajudando. Mas eu não quero acreditar em deus. Não agora. Preciso me concentrar. Decoro palavras. Expressões fabricadas para não aparentar o que realmente quero. Mais uma vez. As teclas são tão miúdas para tanta vontade. Um avião passa rasante e faz barulho. Decido não ligar. Deixa o avião passar. E também o ônibus. Deixe que tudo passe. Vou tomar um café antes de ligar de novo. Preciso deixar bem clara minha intenção. Não quero saber de sua vida inteira. Farei apenas uma pergunta como se faz com gente amiga. Uma pergunta despreocupada. Largada. Não posso me perder no flagra da vontade que não passa. Mas você sabe: acaso estivesse aqui (de novo) nada seria como antes. Mudei. Você, provavelmente, também mudou. O gosto deve ser outro. O olhar, o modo de tocar as mãos, e, talvez, nem seja mais o que eu queria que fosse. E nada mais vai bater. Nem conversa, nem beijo, nem malabarismo. Nada será igual. Mas ainda quero ligar. Ouvir a voz distante, perceber um tom estranho quando atender ou talvez um sinal de surpresa. Talvez uma prova de que ainda há sentido. Mas não posso me enganar. O café desceu correndo com pressa porque tenho vontade de fazer logo isso. Ligar de vez e dizer somente o necessário. Como se faz em ônibus: fale somente o necessário. E, sendo desta forma tão econômica, não haverá nada demais. Apenas dois amigos conversando, trocando palavras de bom trato e a sede será camuflada por uma simples preocupação. Decorei o que vou dizer: Olá. Tudo bem? Ou devo dizer um cantante como vai você? Vergonha na cara brota incisiva. Não posso mais esperar por este momento que já morre adiado. Estou por um fio de meu maior ato suicida. Dizer amor ao escuro é uma sensação terrível. E não há mais amor. Vou dizer exatamente isto. Quer saber? Estou ligando para dizer que não ligo. Era apenas uma vontade incômoda de saber se você está bem. Mas, na verdade, não me importo. E escuta bem porque não vou me gastar à vida inteira aqui, ao telefone. Ligo somente para dizer que, embora você pense que ainda sinto algo, não sinto. Esta é a verdade. Eu comando minhas vontades e saiba que controlo o que sinto e já não sinto nada. Que fique claro. Só liguei para dizer que, embora ainda me doa passar dia solitário, lembrar de você de segundo a segundo, procurar você em outras pessoas, saber que sua boca fala outra língua, assim como todo o resto de seu corpo, não me importo mais. A dor se tornou tão comum que passou a ser discreta. Vou ligar e você terá de aguentar minha verdade. Que morra, que se dane, que se acabe. Que me importa saber se você está bem? Ligo. Número por número. Decisão tomada, mãos apoiando o rosto, ônibus que passa e, de novo, a mensagem que salva: O número que você ligou encontra-se desligado ou fora da área de serviço. Coito interrompido. Bruta sensação de trem não partido.

Letícia edita o blog http://leticiapalmeira.blogspot.com/

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