quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Mifô no ônibus

POEMINHA NIETZSCHIANO


Quando as luzes dos apartamentos
no prédio ao lado se apagam,
como estrelas que vão morrendo a olho nu,
repito o mesmo ritual deprimente de todas as noites,
e apago também o resto da cidade que persiste.

Primeiro apago a última ponta de cigarro
no fundo da xícara de porcelana.
Em seguida apago as digitais que ficaram
em minhas retinas após mais um dia de cão sem dono.
Cada rosto miserável, cada sorriso de ostentação,
cada lágrima sem sentido, borro, cuspo,
jogo no lixo para não deixar nenhum vestígio.

Ainda de pé, diante da janela, entrecortado
pela luz da lua que transpõe a persiana,
apago as lembranças pelas quais sou acometido
durante longas jornadas noturnas,
como doenças crônicas e incuráveis.

Apago dos meus tímpanos a lembrança de um gemido.
Das minhas narinas apago um cheiro qualquer de líquido.
Apago da minha boca o gosto de um batom
cuja validade nunca se vence
(Está nele sempre o mesmo sabor suculento de maçã).

Salivo e apago neste ritual diário
toda a cidade que em mim persiste.
No dia seguinte, porém, acendo mais um cigarro
cuja ponta será amassada no fundo
da xícara de porcelana.

o poeta Luis Fernando Mifô edita o blog http://www.luisfernandomifo.blogspot.com/

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