sábado, 12 de maio de 2012

Miopia tem cura?




Betomenezes


Não tem uma vez que não aconteça. Toda vez que acordo e abro os olhos, o primeiro pensamento que me vem é: cadê meus óculos? Sou míope. O que eu enxergo além do meu braço, quando estou sem óculos, é uma borra de cores. Parece que as cores rompem os contornos das formas e se misturam em uma pintura tridimensional sem foco. E se olho para mais longe, a confusão quer se ampliar em uma dimensão e assim sem óculos não me atrevo a sair de casa. Sou quase cego sem essas lentes.

Hoje quando acordei, procurei os óculos e eles não estavam lá onde sempre ponho. Geralmente alguém me socorre; alguém que enxergue além de dois palmos. Mas hoje eu estava só. Se não existissem óculos, é certo que há muito eu estaria acostumado com a situação, assim como os cegos. Porém me apavoro só com a idéia de continuar assim, quero os meus óculos. Geralmente fecho os olhos e espero, vou dormir mais um pouco. Nos sonhos não uso óculos, enxergo o que quero, como quero. Hoje não foi dia para esticar a soneca. Não esperei pelo bom samaritano que não iria chegar. Tive que levantar e ir palpando as paredes, até chegar nas reentrâncias e saliências do mar de objetos sobre a mesa desarrumada; com os olhos bem perto, para trazer à luz duas lentes transparentes, presas a duas hastes metálicas invisíveis no meio de tanta bagunça.

Imagine um mundo em que todos tivessem um tipo diferente de miopia, uma miopia extrema. Explico: depois de certa distância (digamos, um metro) não se enxergasse nada e para esse mal não existissem óculos. A visão estaria encarcerada em uma esfera de um metro de raio. Nossos olhos seriam o centro desta esfera; um abajur que iluminaria só dentro dela. Fora, a incerteza. Todos nesse mundo teriam uma lanterna destas e mais nada. Se houvesse alguém sem esse problema, veria os quase-cegos vagando pelas ruas, caminhando de lá pra cá, de cá pra lá. Teriam que para ver para crer.

E se além de quase-cegos, todos fossem quase-surdos, da mesma maneira. Não se poderia indagar, “tem alguém aí?”. Cada um seria uma barco à deriva, que, quando em quando, por coincidência poderia se chocar com outra navegação. E nesse encontro, quando as esferas da iluminação se coincidissem, não haveria mais cegueira, não haveria mais surdez; mas apenas nesse encontro de metros, na superposição das duas esferas. Para continuar assim, perpetuar este instante, os que se esbarrassem não poderiam mais se separar, ou correriam o risco de nunca mais se acharem; como dois barcos no meio do Oceano depois que transpõem a linha do horizonte.

O horizonte. É, finalmente achei o meu par de óculos. Escorregadio se meteu por baixo de folhas amassadas de jornal. Pus no meu rosto e, tranqüilo, fui passear na orla. Na praia vazia, sentei na areia, a fim de ouvir o som do quebrar das ondas, no entanto me distraí com uma linha que se estendia horizontal. Roubava as minhas vistas: a linha do horizonte.

A palavra horizonte vem do grego orizon que, como é de se esperar, significa limitar. Durante milênios, o terror de qualquer cidadela desprovida de uma boa defesa era a possibilidade de surgir na linha de horizonte algum batedor de uma tropa inimiga de tamanho e força incógnitos. Paliativos eram tomados, como pôr torres de vigia para ampliar o raio de visão, que mesmo assim eram limitados. E muitas batalhas foram decididas desta maneira, com a surpresa, pela terra ou pelo mar, do inimigo que vinha por trás da linha do horizonte.

Se sobre ombros se vê mais longe, imagina sobre ombros de gigantes. Respostas não levam ao silêncio, levam a mais perguntas. E perguntas e mais perguntas vieram à tona. Muitos baús foram remexidos atrás de óculos para elas. Viu Darwin a origem das espécies. Viram Rutherford e Bohr a eletrosfera quântica. Viu Einstein a relatividade do movimento. Viram Flemming e Mendell o gen. Viu Hubble o Big-Bang. Viram Crick e Watson o DNA.

Para não se prolongar numa lista extensa de iluminações, basta dizer que a ciência e todas as revoluções que se sucederam por esses séculos alargaram o horizonte para uma distância confortável. Porém, ainda restam infinitos horizontes que não conseguimos romper. Einstein disse: “Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana e quanto à primeira não tenho a certeza”. Sobre o Universo ainda não se tem certeza, porque o que podemos ver dele é só a distância que a luz percorreu desde a sua criação, nunca se saberá além disso. Já sobre a estupidez humana, sou mais otimista do que Einstein, mas devo dizer que há muito estúpidos que por conveniência querem permanecer sem enxergar um palmo à frente, mesmo existindo óculos para eles.

Depois de um dia inteiro, eu ainda estava na praia. A cinco quilômetros na minha frente a linha do horizonte que escurecia. Cansado de olhar para ela, desejei ir até lá, nadar para muito mais do que cinco quilômetros, para além de miríade de linhas. Beber do leite de nossa galáxia, desmanchar a beleza das nebulosas e pendurar minha rede na orla do horizonte do Universo, e ali descansar para outras jornadas. A certa altura, esqueceria que precisava de óculos para ver, mas eles estariam lá.

Miopia tem cura. Basta apenas encontrar as lentes certas, quase sempre elas existem.


 
Publicado em maio de 2010 no Jornal O Contraponto

2 comentários:

  1. Me identifiquei por completo. Míope com quase cinco graus. Os óculos são a minha janela para o mundo... Gostei!

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