Conto de Amanda Paiva

O Taxidermista

*Amanda  Paiva

Depois de quinze anos vendo meu pai fazer isso e mais quinze nesse ramo, já havia me acostumado com os odores, sangues e órgãos que para qualquer um seriam repugnantes. Como dizia a primeira lei que meu pai me disse “A maior qualidade de um taxidermista, querido Brian, é a frieza” e assim fiz. Coloquei mais uma vez o avental e fui ao trabalho que em casa mesmo fazia. Dessa vez, por dinheiro e não por arte, era o gatinho de uma vizinha que por minhas mãos seria eternizado.

Banhei-o nos aromas e conservantes, depois abri e retirei com cuidado todo o interior que ainda estava quente. O segredo era tirar por um orifício pequeno para valorizar o trabalho, fato que só se conseguia com anos de prática. Depois preenchi tudo com a palha e dei os últimos retoques. Ainda olhava a obra pronta quando ouvi Max me chamar na porta, desci as escadas e ao abrir a porta ele praticamente se atirou aos meus pés por uma companhia rumo á um bordel.

Com essa tal revolução industrial o número de fábricas na Inglaterra só aumentava. Algumas moças de família ainda se arriscavam pelas sombras da noite com suas usuais saias armadas atrás, os cavalheiros todos bem vestidos cortejavam algumas delas ao longe. Em contraste, vinham saindo do trabalho os operários sujos, humildemente vestidos e com o cansaço visível. Foi quando minhas vistas se iluminaram da figura mais encantadora que já vira. O avental não lhe quebrava o decoro nem a beleza da pele branca, lábios carnudos e traços marcantes, porém delicados, seus cabelos lisos descendo pela cintura coreografava perfeitamente com seu balanço lascivo de quadris.

Naquela noite, e nas que se seguiram, nenhuma outra mulher ousei tocar, nenhuma me saciava, perto dela as outras não faziam sentido. Diariamente passei a frequentar aquela rua no mesmo horário na esperança de admirá-la, durante o restante do dia via seu rosto nas árvores, no amanhecer, na escuridão do inferno que se fazia brilhar, nos rostos mais vulgares de homens e mulheres. Consegui saber apenas seu nome, Lucy. Minha amada Lucy. O tempo passou, e o meu fardo me consumia, queria esta moça como nunca quis nada na vida. Seria capaz de beber seu sangue se algo interrompesse meu caminho, ou apenas de arrancar o meu coração e dar-lhe em um belo embrulho.

Fui novamente àquela rua a sua procura. Mas ela não estava, talvez ficasse até mais tarde. Num momento de covardia decidi abandonar meu posto. Fui ao bordel de Madame Clô, bebi muito e a ultima lembrança que me vem é a de mulheres me rodeando, música e gemidos. Acordei no dia seguinte numa cama desconhecida. Esquadrinhei o quarto e avistei uma mulher de costas penteando os cabelos, ela ao notar meus movimentos virou-se de súbito, me causou um espanto sem tamanho, era ela, a moça da fábrica, a moça que estava quase nua na minha frente e eu deitado na cama de um cabaré, minha Lucy. Ela deu bom dia e perguntou se a noite havia sido boa. Mas que noite? De nada lembrava-me, me vesti rapidamente e saí do quarto.

Cheguei em casa três vezes mais rápido que o habitual, nesse dia não trabalhei e mal comi, a angustia fazia a dor se espalhar, me fazendo ter vontade constante de acabar com ela cravando algo cortante no estômago. E no meio de meu banho acabei me decidindo, iria atrás dela ou acabaria louco.

Ao ver-me levou um susto, quando propus a de ir até minha casa, ficou insegura mas concordou. Dessa vez me concentrei em não perder nenhum momento, deliciando-me em cada milímetro de suas curvas. E numa explosão de desejos e úmidos lábios não pensava em nada mais, a não ser no deleite em suspiros voluptuosos que ali ocorria.

Terminamos e ela ficou deitada sorrindo em frenesi. Acendi um charuto e sentei-me ao seu lado. A dor angustiante da decepção havia parado um pouco, e resolvi falar.

- Eu te olho há muito tempo, naquele dia que saí correndo foi porque fiquei decepcionado de você ser o que você é. Na verdade te via como “minha” mulher.

A conversa parecia despreocupada e ela olhava tudo atenta com seus olhos curiosos.

- Eu não entendo, você não pode me querer moço, eu não sou mulher de se casar.

Cheguei perto dela e segurei firme seu rosto comprimindo suas bochechas, fazendo-a arregalar os olhos de medo.

- Não, você é o que eu quero Lucy. Fique comigo e nada mais lhe afligirá, não permitirei que te falem mal nem precisa fazer mais trabalho na fábrica nem em outro local. Dar-te-ei uma vida de rainha e só te peço em troca seu amor, apenas isso.

Ela empurrou minha mão de sua face e vincou a testa contrariada. Me fez recuar um pouco, mas continuei defronte olhando-a confuso.

- Não, não! Você está maluco, eu não posso te amar apenas porque você me pede, amor não é isso. Não me force a nada, apenas estou aqui porque me prometeu pagar bem. E só não me fui ainda por isso.

Ela me torturava e rejeitava meu amor, e ainda ameaçava sair dali, de meus braços.

- Imploro que me conceda dois pedidos: deixe-me banhá-la e dance comigo. Vamos esquecer o que falamos, e aproveitar esse momento. Por favor Lucy. Seja minha agora.

Ela sorriu amigavelmente concordando. Levantou-se e eu a levei ao banheiro, preparei um banho especial, os aromas das flores e ervas tomavam conta do cômodo. Ela achando tudo engraçado entrou na banheira e começou a me molhar, eu sorria e molhava-a, a água deslizava por seu alvo busto tornando aquilo mais desejável.

Levantei-a nos braços ainda molhada e nua, não me importava se meu quarto se inundara de água, ele já estava inundado dos suspiros. E a segurei firme perto do corpo, demos alguns passos na escuridão calada do quarto, não se via olhos nem sorrisos nem nada que não importava, apenas se sentia e ouvia, ouvia-se sua respiração arquejante e a minha que parecia gritar de fúria em sua orelha.

- Diga-me agora Lucy, fale que me deseja tanto quanto eu, que nossos corações e respirações sejam constantes se fazendo um só corpo aqui, no céu ou no inferno não importa. Todos os sentimentos, nada me envergonham.

- Já disse, pare com isso. Deixa-me com medo. Se for assim irei embora.

Ela perdeu a firmeza da mão e entendi como uma tentativa de se livrar de meu abraço. Na escuridão apareceu um brilho, talvez premeditado, da faca que logo cedo usei para cortar umas coisas, ali afiada em cima da cabeceira. Bailei até lá com ela junto a mim. Ela nada notou, senti com a palma o osso de sua costela e o vazio que daria direto no pulmão. Peguei rapidamente a faca e cravei no lugar urdido. Ela deu um grito alto e quis cair, eu segurei firme e ela gritava de agonia, cravei-lhe mais umas três vezes antecipando o sono eterno e enquanto isso gritava de prazer “Eu te amo minha Lucy”. O sangue espirrava pelo chão e escorria por meus dedos. Até que ela deu o ultimo suspiros e desencravou suas unhas de meu braço.

Levei-a para meu local de trabalho beijei cada fragmento de seu cadáver ainda quente. Primeiro retirei seus órgãos, o mais minucioso foi a retirada do seu coração ficando feliz em está intacto. Coloquei em um tubo com conservantes que posteriormente enfeitaria minha cabeceira. Após um bom tempo ela estava devidamente no ponto para a palha habitar sua pele sem vida.

Meu coração ainda acelerado e os olhos arregalados, olhei para a peça pronta deitada para jamais sair de seu leito de morte, e de nova vida, de eternidade ao meu lado.

Deitei-a devidamente aninhada ali, fiz os últimos retoques e enfadado de cansaço e êxtase pensei ouvir uns parabéns, talvez fosse meu pai orgulhoso, ou apenas minha consciência. Cobri-a com um lençol de minha mãe, bordado especialmente para o dia de meu matrimônio. Nosso quarto é a única testemunha do começo de meu luto, e aquela noite de segredos se misturou às outras tantas ao lado dela.

Beijei-a carinhosamente e perguntei-lhe de seu amor por mim, acho até que ouvi um eu te amo no meio da noite.

*Amanda Paiva é uma jovem de apenas 16 anos, estudante do 2º ano do ensino médio.

Quando li o conto fiquei impressionado com sua capacidade narrativa e a forma com que ela construiu o texto, envolvendo-me da primeira à última palavra.

Acredito que Amanda poderá nos reservar boas surpresas futuras.

Só nos resta esperar.