Por João Matias
Sabe a condenada os tormentos do condenado. Lentamente molha os dedos na vasilha de água benta, esparge as gotas sobre ele, deixa escapar em cada gota a sujeira escondida sob as unhas de cada dedo. Puritana a enfermeira, cheia dos santos, pés de igreja, crucifixos, água sagrada. Os últimos micróbios cristãos na ante-sala da morte.
– A TV tá boa?
– …
– Responde balançando a cabeça!
O garotão na cadeira de rodas, tetraplégico, sem nenhum controle sobre o corpo abaixo do pescoço. Também não fala, só ouve. As gotas da água benta caem-lhe pelo rosto, passam pelos olhos, misturam-se na profanação da víscera. A moça era a enfermeira que lhe cuidava na jaula imunda de três metros por quatro. Nada além da cadeira declinada, a tevê, a penteadeira, o crucifixo na parede.
– Em nome do pai, do filho e do espírito santo – disse a moça nos movimentos de dedo sobre os olhos do interlocutor.
– …
– Diga amém.
– ?!
Os filhos do rapaz no dia pensaram em visitá-lo. Visita adiada – quiçá morra até o dia. A ex-esposa não queria saber, três meses já na cadeia e a pena capital computada para o mês seguinte. Ele sentia que morria. E todos devem morrer um dia.
– Como pôde fazer aquilo, Juvenal?
– …
– Matar gente daquele jeito…
– …
– Sem vergonha? Pois que pague lá em cima. Minha reza diária pede por sua alma todo santo dia, mas não vão de pagar pelo cometido, pecado bruto. Monstro de homem.
Os presos comentavam pelo pátio do presídio: nunca um fora mais corajoso. O primeiro a quem a pena capital, cadeira elétrica ou enforcamento, funcionaria após liberada. Frio e pacífico, o olhar, o jeito, a respiração: Juvenal nem parece ter matado o grupo de seminaristas no ônibus jogado do alto da montanha.
A mosca enrosca-se no hemisfério direito de sua cabeça, como a procurar resposta no labirinto do inelutável. O rosto pintado de água parecia reluzir sinal de arrependimento. Mas não, mas não. Cabra safado. A enfermeira estapeia a mosca, que pousa no braço do homem. E lá fica por mais alguns minutos, mas sai tonta inebriada com o anseio de culpa.
Uma gota escorre-lhe pela cova do pescoço, em suor na saleta, febril de calor. A enfermeira nem percebe, abre revista de moda, e na tevê o pastor esparge as águas de Jericó sobre um conjunto de toalhas de fiéis. Programação religiosa todo o dia, toda a hora, todo minuto. Os segundo se batem nas grades de ferro.
O volume alto, a enfermeira levanta-se para baixar. Pela respiração forte percebe-se o enfado da dona. Mas ela olha para o cabelo desgrenhado do rapaz, depois olha para a penteadeira…
“A penteadeira, o pente, o pente, o pente. É agora!”
O leve toque no pescoço do paciente, os dentes passavam-lhe por entre os fios metálicos do cabelo sujo. Tão imundos, oleosos, o pente quase ficava ali pela mata do couro. Mas a danada solta com um jeito, um desenrolar de fios no passar do objeto, a cabeça relaxa, o corpo distende, a alma goza. Fluxo por fluxo, cima e baixo – opa, ali uma feridinha –, cima e baixo – muda pra esquerda agora –, cima e baixo – nesse o pente quase fica.
“Ó, ó, ó, aqui.”
Ela percebe o pescoço relaxado na hora do pente. As pálpebras dos olhos fecham-se como duas florezinhas miúdas tocadas pelo leve roçar de pele. “Canalha, por que o gozo? Nem assiste ao canal de tevê. Pela própria salvação o que faz ele? Santíssimo, ele gira o pescoço, dobra-se todo, só o pente pra isso?”.
Nada diz. Mas ela pára. E ele abre os olhos, gira o pescoço em direção ao triste guardar do pente na gavetinha da penteadeira. Ela senta, e o olha. Ele olha para ela com olhar de seminarista morto. “Meu Deus”, ela exclama para si.
Passaram dias juntos. As conversas ela repetia ao ouvido dele sobre bíblia, evangelho, senhor Jesus Cristo: ele ouvia, os olhos dançavam pela sala, e dormia. Dava por si quando o desgraçado já aos roncos inaudíveis. Quer despeita maior? A televisão com programação cristã durante o dia, a condenação dali a uma semana.
– Jesus Cristo, diz que se arrepende, meu Deus. Vai, santíssimo. Faz um movimento de pescoço, ó meu querido. Tu és um cristão, diz. Diz pra mim, vai.
– …
Uma ofensa tanto para ela como para os presos, alguns convertidos, outros pagãos à espera ou espreita do primeiro túnel de escape. Mundo cão o de presídio. O Jesus que liberta convive lado a lado com a colherinha de escavar a fuga: libertação por libertação, até o quadro do bendito usaram para tapar o buraco. Este o carcereiro descobriu e puniu na hora, não o Jesus, sim os presos. Liberdade só em Cristo, ó pagãos.
– Os dias tão acabando para tua ovelha. – diz o carcereiro à morena enfermeira.
– Sempre acaba pra todo mundo.
Ela desenha uma cruz no rosto do paciente, que a repele nas pálpebras murchas, os olhos de desdém por entre os dedos. “Você não se arrepende?”, pensa. Quando em passagem bíblica um monstro fora perdoado pelo santíssimo? Não lembra, mas cria trecho de parábola mais ou menos assim:
– Olhe, Judas antes de trair Jesus havia assassinado no dia uns dez ou vinte marceneiros de uma cooperativa de Jerusalém. Queria os pertences deles, judeu que era. Pegou uma faquinha e, um por um, ó, pá. Matou todos. Nem lutaram, eram cristãos, se deixaram matar por amor ao santíssimo. E ainda assim Cristo o perdoou. Ele que traiu o santíssimo dias mais tarde. O todo cheio de misericórdia. Com tu não ia ser diferente. Basta orar.
– ?!
– Que cara é essa? Contei mentira?
– …
Era tarde, ela se levanta, desliga a tevê para o cristão dormir e, na iminência de sair da saleta e trancar a grade – ó Deus, liberdade só em Cristo – olha os cabelos desgrenhados, a mucosa já oleosa do calor de todos dias, o sol que sempre entrava tinindo pela janela única do cubículo e pousava sobre a nuca do pobre. Abre o espelho da penteadeira, retira o pente…
“É hoje, papai do céu”.
“Ó, ó, ó, isso!”.
“Assim, pô, assim, aqui”.
“Não, acolá, vai, ali”.
“Acabou não, acabou não, vai embora não!”.
Ao pé da porta, antes de deixar o paciente, um olhar de pesar impele a moça aos dedos que fazem o sinal da cruz diário no condenado. Era amanhã o dia. Elétrica ou enforcamento? O rapaz novo: sentia pena e ódio. Prostrado na cadeira à espera da própria morte que chegaria desde o dia do assassinato em série, o internato no hospital a mais de três meses, suplício de espera e…
– O que é isso, Juvenal?
A barra da calça molhada, uma poça d’água ali no meio, jamais percebida de longe. Urina não era, o fazia por cabos. Não só movimentava o pescoço? Os fluidos não eram limitados?
– Ó Jesus, não pode ser…
Ruborizada, a enfermeira deixou a grade trancando a porta com ênfase. O danado acordou com o estampido, levantou os olhos e deu com ela, a cara sob as mãos pelo corredor, vermelha, vermelha. Um camaleão nas inúmeras caras e cores de entre o crucifixo na parede e o pente no espelho.
– Chegou tua vez, safado. – bradou o carcereiro. A quinta-feira de manhã brandia pela janela.
Comida na boquinha como todos os dias. A enfermeira nem o olhava na cara. Ele displicentemente mastigava os nacos de pão sob os dentes. No canal de tevê: rende-te ao salvador, rende-te! Ele mastigava, cuspia, babava, olhava em redor: as moscas cheiravam-nos de longe e ousavam um e outro toque na pele do assassino condenado. Dentro da sela, a enfermeira e o carcereiro. Este olhava a televisão e a moça, reclinada sobre o rapaz, não sabia qual programa mais rezava pela alma, se católico ou evangélico.
Entra o pastor, os outros saem. A mulher limpa no lencinho as babas sob o rosto do condenado e benze pela última vez.
Meia hora depois, preparado para o abate. A enfermeira o conduz do corredor até a câmara. Elétrica ou enforcamento? Os presos de cruz nas mãos, em cada grade, rogavam sorte, pregavam a palavra aos gritos, “até mais” e “até logo”. “Até amanhã”. “Conta lá de cima”. “Joga a chave pela janela”. “Escapou sem túnel”. “Beija a mão da dona de preto”. “Sai desse corpo que não é teu”.
O pastor levava a cruz, cerimoniosamente, encostada ao peito. Numa das saletas por que passava, um preso respingava na sela penteando os longos cabelos lisos que exibia orgulhoso. O condenado na cadeira arregalou os olhos, notara a enfermeira. Com uma mão de leve a raspar caspas do couro detrás da cabeça, principiou ela a pentear-lhe os cabelos pequenos do pescoço. A extrema-unção levada do mundo para o reino dos céus.
– A TV tá boa?
– …
– Responde balançando a cabeça!
O garotão na cadeira de rodas, tetraplégico, sem nenhum controle sobre o corpo abaixo do pescoço. Também não fala, só ouve. As gotas da água benta caem-lhe pelo rosto, passam pelos olhos, misturam-se na profanação da víscera. A moça era a enfermeira que lhe cuidava na jaula imunda de três metros por quatro. Nada além da cadeira declinada, a tevê, a penteadeira, o crucifixo na parede.
– Em nome do pai, do filho e do espírito santo – disse a moça nos movimentos de dedo sobre os olhos do interlocutor.
– …
– Diga amém.
– ?!
Os filhos do rapaz no dia pensaram em visitá-lo. Visita adiada – quiçá morra até o dia. A ex-esposa não queria saber, três meses já na cadeia e a pena capital computada para o mês seguinte. Ele sentia que morria. E todos devem morrer um dia.
– Como pôde fazer aquilo, Juvenal?
– …
– Matar gente daquele jeito…
– …
– Sem vergonha? Pois que pague lá em cima. Minha reza diária pede por sua alma todo santo dia, mas não vão de pagar pelo cometido, pecado bruto. Monstro de homem.
Os presos comentavam pelo pátio do presídio: nunca um fora mais corajoso. O primeiro a quem a pena capital, cadeira elétrica ou enforcamento, funcionaria após liberada. Frio e pacífico, o olhar, o jeito, a respiração: Juvenal nem parece ter matado o grupo de seminaristas no ônibus jogado do alto da montanha.
A mosca enrosca-se no hemisfério direito de sua cabeça, como a procurar resposta no labirinto do inelutável. O rosto pintado de água parecia reluzir sinal de arrependimento. Mas não, mas não. Cabra safado. A enfermeira estapeia a mosca, que pousa no braço do homem. E lá fica por mais alguns minutos, mas sai tonta inebriada com o anseio de culpa.
Uma gota escorre-lhe pela cova do pescoço, em suor na saleta, febril de calor. A enfermeira nem percebe, abre revista de moda, e na tevê o pastor esparge as águas de Jericó sobre um conjunto de toalhas de fiéis. Programação religiosa todo o dia, toda a hora, todo minuto. Os segundo se batem nas grades de ferro.
O volume alto, a enfermeira levanta-se para baixar. Pela respiração forte percebe-se o enfado da dona. Mas ela olha para o cabelo desgrenhado do rapaz, depois olha para a penteadeira…
“A penteadeira, o pente, o pente, o pente. É agora!”
O leve toque no pescoço do paciente, os dentes passavam-lhe por entre os fios metálicos do cabelo sujo. Tão imundos, oleosos, o pente quase ficava ali pela mata do couro. Mas a danada solta com um jeito, um desenrolar de fios no passar do objeto, a cabeça relaxa, o corpo distende, a alma goza. Fluxo por fluxo, cima e baixo – opa, ali uma feridinha –, cima e baixo – muda pra esquerda agora –, cima e baixo – nesse o pente quase fica.
“Ó, ó, ó, aqui.”
Ela percebe o pescoço relaxado na hora do pente. As pálpebras dos olhos fecham-se como duas florezinhas miúdas tocadas pelo leve roçar de pele. “Canalha, por que o gozo? Nem assiste ao canal de tevê. Pela própria salvação o que faz ele? Santíssimo, ele gira o pescoço, dobra-se todo, só o pente pra isso?”.
Nada diz. Mas ela pára. E ele abre os olhos, gira o pescoço em direção ao triste guardar do pente na gavetinha da penteadeira. Ela senta, e o olha. Ele olha para ela com olhar de seminarista morto. “Meu Deus”, ela exclama para si.
Passaram dias juntos. As conversas ela repetia ao ouvido dele sobre bíblia, evangelho, senhor Jesus Cristo: ele ouvia, os olhos dançavam pela sala, e dormia. Dava por si quando o desgraçado já aos roncos inaudíveis. Quer despeita maior? A televisão com programação cristã durante o dia, a condenação dali a uma semana.
– Jesus Cristo, diz que se arrepende, meu Deus. Vai, santíssimo. Faz um movimento de pescoço, ó meu querido. Tu és um cristão, diz. Diz pra mim, vai.
– …
Uma ofensa tanto para ela como para os presos, alguns convertidos, outros pagãos à espera ou espreita do primeiro túnel de escape. Mundo cão o de presídio. O Jesus que liberta convive lado a lado com a colherinha de escavar a fuga: libertação por libertação, até o quadro do bendito usaram para tapar o buraco. Este o carcereiro descobriu e puniu na hora, não o Jesus, sim os presos. Liberdade só em Cristo, ó pagãos.
– Os dias tão acabando para tua ovelha. – diz o carcereiro à morena enfermeira.
– Sempre acaba pra todo mundo.
Ela desenha uma cruz no rosto do paciente, que a repele nas pálpebras murchas, os olhos de desdém por entre os dedos. “Você não se arrepende?”, pensa. Quando em passagem bíblica um monstro fora perdoado pelo santíssimo? Não lembra, mas cria trecho de parábola mais ou menos assim:
– Olhe, Judas antes de trair Jesus havia assassinado no dia uns dez ou vinte marceneiros de uma cooperativa de Jerusalém. Queria os pertences deles, judeu que era. Pegou uma faquinha e, um por um, ó, pá. Matou todos. Nem lutaram, eram cristãos, se deixaram matar por amor ao santíssimo. E ainda assim Cristo o perdoou. Ele que traiu o santíssimo dias mais tarde. O todo cheio de misericórdia. Com tu não ia ser diferente. Basta orar.
– ?!
– Que cara é essa? Contei mentira?
– …
Era tarde, ela se levanta, desliga a tevê para o cristão dormir e, na iminência de sair da saleta e trancar a grade – ó Deus, liberdade só em Cristo – olha os cabelos desgrenhados, a mucosa já oleosa do calor de todos dias, o sol que sempre entrava tinindo pela janela única do cubículo e pousava sobre a nuca do pobre. Abre o espelho da penteadeira, retira o pente…
“É hoje, papai do céu”.
“Ó, ó, ó, isso!”.
“Assim, pô, assim, aqui”.
“Não, acolá, vai, ali”.
“Acabou não, acabou não, vai embora não!”.
Ao pé da porta, antes de deixar o paciente, um olhar de pesar impele a moça aos dedos que fazem o sinal da cruz diário no condenado. Era amanhã o dia. Elétrica ou enforcamento? O rapaz novo: sentia pena e ódio. Prostrado na cadeira à espera da própria morte que chegaria desde o dia do assassinato em série, o internato no hospital a mais de três meses, suplício de espera e…
– O que é isso, Juvenal?
A barra da calça molhada, uma poça d’água ali no meio, jamais percebida de longe. Urina não era, o fazia por cabos. Não só movimentava o pescoço? Os fluidos não eram limitados?
– Ó Jesus, não pode ser…
Ruborizada, a enfermeira deixou a grade trancando a porta com ênfase. O danado acordou com o estampido, levantou os olhos e deu com ela, a cara sob as mãos pelo corredor, vermelha, vermelha. Um camaleão nas inúmeras caras e cores de entre o crucifixo na parede e o pente no espelho.
– Chegou tua vez, safado. – bradou o carcereiro. A quinta-feira de manhã brandia pela janela.
Comida na boquinha como todos os dias. A enfermeira nem o olhava na cara. Ele displicentemente mastigava os nacos de pão sob os dentes. No canal de tevê: rende-te ao salvador, rende-te! Ele mastigava, cuspia, babava, olhava em redor: as moscas cheiravam-nos de longe e ousavam um e outro toque na pele do assassino condenado. Dentro da sela, a enfermeira e o carcereiro. Este olhava a televisão e a moça, reclinada sobre o rapaz, não sabia qual programa mais rezava pela alma, se católico ou evangélico.
Entra o pastor, os outros saem. A mulher limpa no lencinho as babas sob o rosto do condenado e benze pela última vez.
Meia hora depois, preparado para o abate. A enfermeira o conduz do corredor até a câmara. Elétrica ou enforcamento? Os presos de cruz nas mãos, em cada grade, rogavam sorte, pregavam a palavra aos gritos, “até mais” e “até logo”. “Até amanhã”. “Conta lá de cima”. “Joga a chave pela janela”. “Escapou sem túnel”. “Beija a mão da dona de preto”. “Sai desse corpo que não é teu”.
O pastor levava a cruz, cerimoniosamente, encostada ao peito. Numa das saletas por que passava, um preso respingava na sela penteando os longos cabelos lisos que exibia orgulhoso. O condenado na cadeira arregalou os olhos, notara a enfermeira. Com uma mão de leve a raspar caspas do couro detrás da cabeça, principiou ela a pentear-lhe os cabelos pequenos do pescoço. A extrema-unção levada do mundo para o reino dos céus.
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