Por betomenezes
Naquela rua de casas, havia uma casa,
igual a todas as outras casas. Nela havia um portão, não tinha muro
alto, lá não ladrava um cão. Aquela casa estava lá fazia tempo, não se
sabia quando ou quem arquitetou sua edificação. Aquela casa estava lá
fazia tempo, não se sabia quando ou quem, quanto tempo morou ali. Nela
havia muitos cômodos. Janela não tinha grade. Lá não havia medo do
ladrão
Como em toda casa que se preze, havia
uma varanda e um alpendre, ela pro jardim, ele pro quintal. E é destes
dois que vamos falar. Não da casa em si. A casa existiu, sim, e sua
existência definiu a existência deles: do jardim e do quintal.
O jardim e o quintal tinham tamanho
igual, feitos com mesmo zelo, pelos mesmos pedreiros. Esses senhores
brutos não haviam plantado nada: nenhuma árvore, nem pé de fruta, nem pé
de flor. O vendedor entregara a casa assim: friamente linda, sem vida. A
vida que veio morar, essa sim!, trouxe a semente. E em apenas meses,
foi o que precisou pra que o broto vingasse na terra preta.
E o vegetal se espalhou. No jardim, deu
margarida. No quintal, deu tomateira. No inverno ou no verão, tinha
sempre alguém deixando tudo verde: menina usava regador; pai, a água da
mangueira; são pedro só ligava a torneira. Também se empestaram os
bichos: aranha, escorpião, besouro, joaninha. Viviam cada um em seu
lugar. A ninguém mal faziam.
O jardim tinha cor diversa, quando a
rosa, a margarida e a petúnia davam ar de suas pétalas. E, quase sempre
quando dava, a vizinhança inteira esticava o pescoço pra sentir o bom
odor que vinha dali.
Mesmo morador do mesmo endereço, o
quintal, por sua vez, desde o começo, sempre teve a sobriedade como sua
única nobreza. Sempre teve a sombriedade como sua única ardileza.
E naturalmente, como é de costume quando
se trata de tudo relativo à santa natureza, os dois irmãos, o jardim e o
quintal, desde o berço separados pela casa tomaram seus rumos pra lados
trocados.
O jardim, estrela, nunca se perdeu do
olhar cuidadoso de quem tratava, de quem o podava, de quem fazia questão
de sempre mudar de jarro, de colocar seixos coloridos ao redor de cada
florecimento. Olhares cuidadosos que o deixavam assim como uma menina
moça quase antes da hora de debutar.
Pra lá todos iam. De manhã, de tarde e de noite. Um bem bom estar lá fazia.
O quintal, esquecido quase sempre, virou
chão enervurado das raízes das árvores com troncos empanturrados e
galhos que se emaranhavam entre si. Nele jogavam da pia bacias de água
suja. Nele, jogavam coisinhas não mais úteis: cadeiras velhas,
guarda-chuvas velhos, brinquedos velhos; no novo cemitério das coisas
velhas e esquecidas.
Prali já ninguém ia. Quando alguém ia, via o que via e não arriscava ir mais além.
O jardim era o orgulho pra mostrar às
visitas. O quintal, os residentes dali tentavam esconder. O jardim se
fazia presente em todas as fotografias. O quintal, deusulivre, vige
maria, se isso acontecia.
E por anos, essa era a lei: cada um com
sua sina, cada qual em seu lugar. Até que quem morava na casa se foi. E
não chegaram outros pra continuar a função da casa de fazer o quintal e o
jardim, orgulho e vergonha, pois não havia ninguém ali pra julgar.
E, sem ninguém ali, não demorou muito
pra que um ramo da rosa atrevido esticasse a cabeça pra dentro da casa. E
não demorou muito pra que a raiz do abacateiro se adentrasse na
cozinha. E não demorou muito pra que uma erva brotasse na borda da
janela. E não demorou muito pra que o lado de lá se encontrasse com o de
cá.
Sem lei, sem polícia e sem juiz. Logo um pé de flor nasceu entre os raios do pneu da bicicleta do quintal.
Sem lei, sem polícia e sem juiz. Logo um pé de pau nasceu com ajuda dos raios dos sol que antes só abrilhantavam as camélias.
A casa virou estrada aberta, um caminho
de pedra rachada, por onde os irmãos vez por outra se visitavam. E até
hoje se visitam, aos sábados, feriados ou quando dá na telha.
Hoje bichos correm soltos. O fungo e a
flor bebem na mesma mesa. E, mesmo que não haja quem veja, o jardim e o
quintal, hoje sim, formam um belo casal.
A casa, naquela rua de casas, há uma casa, uma casa que não é igual a todas as outras casas.
do blog: http://www.betomenezes.biz/?p=1052
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