EM DEFESA DO
SENHOR E DA SUA MÃE.
João Pessoa estava em pé de guerra esportiva.
Jogariam no domingo Botafogo e Treze, no Almeidão, estádio que ainda cheirava a
novo. Eram esperados 40 mil torcedores, platéia hoje considerada excepcional
para grandes clássicos do futebol brasileiro. Vivíamos o ano de 1975. Ernâni Sátyro
governava a Paraíba e eu presidia a Rádio Tabajara.
A emissora oficial possuía a melhor
equipe de esportes da cidade. Ivan Thomaz, Marcus Aurélio, Geraldo Cavalcanti,
Ivan Bezerra, Eudes Toscano, Hitler Cantalice e muitos outros faziam, sob o
comando do meu irmão Roberto Carlos, a cidade esperar, ansiosa, o duelo entre o
“Galo da Borborema” e o “Belo Pessoense”. Nem mesmo a política, tema permanente
nos papos do fervilhante Ponto de Cem Réis e nas cadeiras e janelas do Clube
Cabo Branco, competia com os comentários, os prognósticos e as apostas que o
encontro entre os rivais alvinegros gerava.
Comandávamos, eu e minha equipe, uma
mudança radical na programação da Rádio Tabajara, com a implantação do estilo “música/informação”
que antecipava, na Paraíba, o charme das emissoras de FM dos anos 80. A novidade já nos dera a
liderança de audiência. Para alcançar esse estágio eu havia, inclusive,
conseguido do governador a promessa de que ele reduziria, sensivelmente, o
número das transmissões oficiais.
A poucos dias do clássico Roberto e Ivan
indagaram, com alguma insistência, o que faria eu se, por azar – diziam eles –
Ernâni “inventasse” de inaugurar alguma obra na tarde do domingo e, suprema
desgraça, quisesse a sua transmissão ao vivo. De tanto falarem nessa angustiante
possibilidade, resolvi reunir a diretoria e, sem muita discussão, decidimos não
atender à hipotética ordem governamental, mesmo que isso nos custasse os cargos.
O indesejado aconteceu. Nas últimas
horas da tarde de sexta-feira que antecedia o jogo, recebi um ofício do Chefe
da Casa Civil, Evaldo Gonçalves, recomendando “de ordem do Excelentíssimo
Governador do Estado” transmitir a solenidade de inauguração de uma escola em
Alagoa Nova, às 16 horas do “próximo domingo”, exatamente no horário em que
trezeanos e botagoguenses mexeriam com a emoção e os nervos de mais de um
milhão de paraibanos.
Entre perplexo e desafiado, convoquei
meus auxiliares e, por unanimidade, resolvemos ignorar, parcialmente, a recomendação
do governador. Mandaríamos um triste, porém conformado, Geraldo Cavalcanti, na
época locutor oficial do governo, a bordo de um carro de som para simular a
transmissão ao vivo da solenidade em Alagoa Nova. Achávamos que o governador e
demais presentes pensariam que o evento estaria sendo irradiado. Uma gravação
seria feita e divulgada, posteriormente, na programação da noite. Um plano
perfeito. Entendíamos que, assim, conseguiríamos uma audiência fechada para a
emissora, durante o jogo Botafogo x Treze.
E, como planejado, foi feito. A Tabajara
deu um “banho” na concorrência, Geraldo caprichou na transmissão em Alagoa
Nova, à noite o áudio gravado foi repetido à exaustão e todos nos consideramos
senhores de, no mínimo, uma inteligência privilegiada. Sem dúvida, um domingo feliz!
Na segunda–feira, provavelmente para
saborear o sucesso do dia anterior, madruguei na emissora. A secretária ainda
não chegara e o telefone já estava tocando. Resolvi atender. Do outro lado da
linha a voz tonitroante do governador Ernâni Sátyro. Tremi nas bases, antevendo
uma baita reprimenda ou, o que pensei ser mais provável, a demissão coletiva da
diretoria. “Meu filho, o diretor já chegou?”- indagou o governador. Hesitei por
alguns segundos em responder, mas resolvi topar a parada no estilo “seja lá o
que Deus quiser”. “É ele quem está falando”. - respondi. E então ele perguntou
se eu havia recebido um oficio assinado pelo “amigo velho Evaldo Gonçalves”.
Ouvindo a confirmação, passou a questionar por que não cumprira a sua ordem,
agravando a desobediência com a simulação da transmissão ao vivo. “Grave, muito
grave e desrespeitosa sua atitude, meu rapaz”. - sentenciou Ernâni Sátyro.
Antes que recebesse a minha demissão e
a de meus companheiros de diretoria, cúmplices na mutreta em defesa da
audiência da Tabajara, resolvi contra-atacar. E o fiz com surpreendente
firmeza: “Governador, realmente recebi, na sexta-feira, o ofício da Casa Civil.
Só que no domingo à tarde, exatamente na hora em que a escola seria inaugurada
em Alagoa Nova, 40 mil torcedores estariam assistindo, no Almeidão, estádio que
o senhor construiu, ao jogo entre Botafogo e Treze. Além disso, mais de 800 mil
paraibanos sintonizariam a Rádio Tabajara para acompanhar a partida. Resolvi,
então, em defesa do senhor e da sua mãe não interromper a transmissão do jogo
para entrar com a inauguração de uma escola”.
Do outro lado da linha uma rápida e
incisiva pergunta: “Pode repetir?”. Sem saber em que camisa de sete varas tinha
me metido, repeti pausadamente tudo o que dissera. Depois de um silêncio de
segundos, que pareceram minutos, a voz grave e alta do governador, desta vez
suave (para mim) encheu os meus ouvidos de alegria e até de emoção: “Entendi,
meu filho. Muito obrigado”.