terça-feira, 1 de março de 2011

Carta de Arturo Gouveia a Rinaldo de Fernandes


Caro Rinaldo,

Li em minúcias a resenha de Alcir Pécora (Folha de S. Paulo, 21/02/2009) sobre o seu romance Rita no Pomar. Não concordo com algumas considerações dele, mas acho que a resenha tem um saldo positivo, que revelarei adiante. Para evitar parcialidade e trocas de elogios baratos, o que é de um provincianismo insuportável, passo a fazer algumas considerações calcadas em bases teóricas. Divido minha argumentação em três partes:
1. O que Pécora diz sobre o posfácio de Silviano Santiago merece uma segunda leitura. Desde já poderíamos marcar na Universidade um debate a respeito disso. Percebo que há uma briga antiga entre as escolas de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas também acredito em algumas anotações relevantes de Pécora. O que acho absurdo, nesse caso, é a gente pender apenas para um lado, sem ver contribuições (às vezes até inconscientes) dos dois lados. Se a unilateralidade é prejudicial ao pensamento crítico nesse caso é ainda mais gritante. Silviano Santiago, a meu ver, comete excessos. Mas Pécora também não fica isento disso. Ocorre que isso constitui uma segunda apreciação, não o núcleo do que pretendo expor.
2. Compreenda que as críticas que vou tecer a Alcir Pécora não constituem, necessariamente, uma apologia do seu romance. Essa questão também é secundária no momento e mereceria um outro debate. A leitura intrínseca e mais atenta de seu romance ficaria, pois, para uma outra oportunidade.
3. Em relação à resenha, gostaria de iniciar um debate sobre as incompreensões de Alcir Pécora, não propriamente a seu romance (embora este seja a causa imediata de toda a questão), mas em relação ao desenvolvimento da narrativa moderna e contemporânea (adjetivos muitas vezes confusos e vagos, mas sem outra opção por enquanto). Acredito que você deveria ampliar a resposta a Alcir Pécora, sobretudo no que tange aos capítulos curtos. Deveria lembrar-lhe, pelo menos, quatro preciosas concepções sobre o romance no século vinte:
B) O romance tem uma forma proteica indefinível. (Bakhtin)
C) Os romances cada vez mais se assemelham a epopéias negativas. (Adorno)
D) A história do romance é a história do anti-romance. (Frank Kermode)
De escolas diferentes, esses quatro teóricos convergem para a mesma concepção acerca da extrema e imprevisível heterogeneidade da forma romance. Com base em Kermode (A sensibilidade apocalíptica), por exemplo, costumo dizer que a história de um gênero, na modernidade, é a história do antigênero. Não é à-toa que outros teóricos e críticos falam de desromance, anti-romance, formas antitéticas e estranhas ao romance, mas que não deixam de ser absorvidas pela extrema flexibilidade do romance. Diante de quadro tão complexo, o que Pécora intitula de “vocação complacente do romance” tem duas implicações muito sérias: 1. Trata-se de um pobre domínio conceitual do romance, como se a abertura inerente a este gênero culminasse, necessariamente, em banalização; 2. Trata-se, paradoxalmente, de um reconhecimento arrogante da forma romance como estrutura fixa, ou seja, como aquele gênero obrigado a ter “expansão diagramática”. Daí ele classificar o seu romance de “novela”, supondo, antes, ser uma classificação “melhor”, como se coubesse à crítica esse tipo de julgamento. Subjaz aí, portanto, um retrocesso crítico e epistemológico de Pécora em relação à evolução da teoria e da crítica no século vinte. Ao mesmo tempo em que devemos combater o relativismo que admite tudo como igual a tudo (sem que não houvesse mais parâmetro para nenhuma abordagem das realizações artísticas), também não se pode mais aceitar esse tipo de postura que quer rotular uma obra à revelia da própria obra. Ora, para Pécora ter firmeza no que afirma, deveria ao menos apresentar alguma diferença ontológica entre romance e novela, o que ele não faz. Além disso, muitas obras se destacam na tradição literária exatamente pela ambigüidade estrutural e pela oscilação proposital entre os gêneros. A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de Jorge Amado, se passa em apenas algumas horas; é publicado pelo autor como romance, mas pode ser pensado como novela pela exigüidade do tempo (convém lembrar que uma certa extensão temporal dessa obra deve-se às rememorações, não às cenas). Crônica de uma morte anunciada, de Garcia Márquez, tem várias linhas temporais, mas o enredo principal – que culmina no assassinato de Santiago Nasar – também decorre em poucas horas. Esse enredo, entretanto, é entrecortado por reflexões – do narrador e de outros personagens –, o que apresenta uma distensão muito próxima da forma romanesca. Exemplos semelhantes ocorrem no romance do século vinte, sobretudo quando estudamos a extrema disparidade entre as categorias que os compõem. Basta lembrar o romance de Joyce que se passa em apenas um dia, mas tem quase oitocentas páginas.
Esses critérios diferenciadores, caro Rinaldo, são muito frágeis e mesmo os melhores teóricos ainda não deram conta disso, como tenho observado nas teorias do conto. No caso do seu romance, o que localizo nele de muito significativo é o trânsito entre linguagens distintas, o que pode transmitir uma aparente incoerência, mas sabemos que é uma elaboração proposital. Por exemplo, os capítulos (ou núcleos) 15 (“Telma e o filho morto”) e 28 (“A senhora do edifício”) podem ser lidos como contos, independentemente da seqüência em que se inserem, mas também podem ser articulados à totalidade do enredo. No que respeita aos padrões de linguagem, observamos que esses dois núcleos seguem uma elaboração muito diferente das demais, distanciando-se, portanto, do léxico e da sintaxe um tanto inorgânica da narradora. Essas diferenças instigam a seguinte indagação: de onde provém esse padrão discursivo e qual o seu sentido no interior da obra? Só uma leitura mais atenta há de mostrar se é tudo elaboração de Rita ou se existe mais de uma focalização implicada no texto. No capítulo 32, em uma rápida anotação de agenda, a narradora declara, em flagrante autocrítica, ser autora de tudo. As incompletudes frasais teriam aí uma chave explicativa, mas, pela diferença já observada nos núcleos 15 e 28, não sei se convém generalizar essa compreensão. Há capítulos, por exemplo, que propositalmente cruzam vozes, mas ainda se sobressai um narrador que as organiza, detendo o monopólio sobre a ordem e a superposição delas. Essa opção complexa não pode ser mostrada em uma resenha, como esta que agora faço. A meu ver, isso é matéria de análise textual, para não se cair em reducionismo. Por exemplo, a linguagem de Rita como revisora de textos não é a mesma da anotação de seus dados. Pécora diz que Rita, como revisora, não é nada confiável, pois já comete um erro de regência na primeira linha. Ora, ele defende uma correspondência mecânica entre a linguagem profissional de Rita e a linguagem mais voltada para si mesma, na rememoração oblíqua e angustiante de experiências mais íntimas e dolorosas. Essa cobrança do crítico, com ecos de preciosismo parnasiano, é improcedente e parece desconhecer toda uma luta do século vinte em prol dos padrões mais diversos de expressão. Isso fica ainda mais grave quando relacionamos a linguagem de Rita com a situação retratada, portanto, como categoria imanente da obra, o que pouco ou nada deve ao seu trabalho de revisora. No caso, Pécora coloca a validade da gramática acima da verossimilhança da obra. 
Pécora, apesar de sua reconhecida competência, chega ao extremo de referir-se ao diálogo de Rita com o cachorro como um “olvidável tatibitate”, sendo o “pobre Pet obrigado a ouvir a dona a imitar seus latidos e ralhar com seus ‘assopros’”. Ele não percebe a necessidade imperativa criada pela insuperável solidão de Rita, que gradualmente decai de sua condição humana para momentos de animalização. Assim, além das expressões dúbias e de crítica inoportuna, Pécora incorre em equívocos a respeito do mais fundamental de uma narrativa, que é a articulação de sua totalidade, seja ela orgânica ou a mais difusa possível.
Além disso, Rinaldo, acho a sua comparação com Brás Cubas (na resposta dada a Alcir Pécora) muito tímida. Você deveria ser mais contundente. Clarice Lispector, em Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, tem um “capítulo” com apenas uma palavra: “Luminescência”. Oswald de Andrade, em Memórias sentimentais de João Miramar, apresenta o “capítulo” 75 com uma curta frase: “Minha sogra virou avó”. Samuel Beckett, em Como é, sequer faz divisões por capítulos, preferindo uma sucessão caótica de parágrafos curtos aparentemente sem sentido e sem avanço do enredo, se é que podemos constatar algum enredo nessa narrativa propositalmente precária de Beckett (ler, a esse respeito, o célebre ensaio “O paradigma da pintura moderna na poética de Beckett: uma arte que não se ressente de sua insuperável indigência...”, de Robert Kudielka. In: Novos Estudos Cebrap, nº 56. São Paulo: Cebrap, 2000, p. 63-75.). A meu ver, essas formas narrativas tão múltiplas, que herdam e reconstroem da tradição inúmeros procedimentos artísticos, da diluição dos parágrafos ao fluxo da consciência, estabelecem, muitas vezes, uma “tensão não-progressiva”. Vale a pena esclarecer: a tensão não-progressiva ocorre quando há um acúmulo de tensões em torno da personagem (problemas externos ou já internalizados e refletidos nos momentos de introspecção) e não há solução – nem no plano do enredo nem no plano estrito da linguagem, da materialidade das palavras. Os meios artísticos acompanham essa impotência gerada pelas situações conflituosas e por isso parecem tão inapropriados à expressão dos fatos. Daí sua desarticulação, sua incapacidade de completude, de atingir uma forma orgânica, no dizer de Peter Bürger (Teoria da vanguarda). 
No caso de seu romance, Rinaldo, acredito que Pécora foi muito precipitado em questões capitais. Por exemplo, ele se refere à fuga para um lugar longínquo como algo muito canônico, com um certo tom depreciativo de que tudo isso já foi realizado e nada acrescenta às realizações literárias. Ora, um aspecto diferencial de Rita é a permanência do conflito nela, em excessos de interiorizações e repetições que não encontram solução romântica tipo happy end, a exemplo do que Pécora parece apontar no que seria o caráter meramente compensatório e idílico da fuga. Sinceramente, aí está um dos erros mais patentes da resenha dele, visto que a mudança geográfica da personagem pode até ser idealizada por ela como um refúgio confortável (vontade de se esconder, como se revela no capítulo final), mas isso não se realiza na prática. Não é à-toa que a insistência no monólogo com o cachorro funciona exatamente como demonstração de extrema solidão da personagem. No dizer de Lukács, ela continua problemática – o que é a essência do personagem romanesco – e, ainda que tenha projetado alguma vantagem espiritual nessa mudança, a presença negativa da “segunda natureza” (as pressões do mundo externo) continua a marcar sua intimidade. Em termos mais específicos: por mais que ela procure fugir de si mesma, tentando esquecer os assassinatos cometidos, é sempre atordoada por lembranças involuntárias, o que lembra Angústia, de Graciliano Ramos. Eis aí um ponto de partida para uma compreensão mais justa de sua proposta narrativa – o que revelaria até mesmo o porquê de Rita não ter um projeto claro de vida, como se sentisse sempre ameaçada de ser descoberta ou de passar por situações semelhantes às vividas em São Paulo, como de fato ocorre com Pedro e o amante. A última frase do livro, aparentemente fútil, mostra o quanto ela transfere para o cachorro a ameaça de vingança. Da perspectiva do leitor, a situação pode ser absurda ou simplesmente retórica; mas, da ótica de Rita, parece que Pet já representa para ela, de alguma forma, mais uma incompreensão, mais uma falta de afinidade, portanto, mais uma possibilidade de traição. Em última instância, caro Rinaldo, esse cachorro Pet não seria imaginário? Não lembro agora se algum outro personagem, afora Rita, tem contato com ele... Por isso repito: só uma análise textual apontará possibilidades que a primeira leitura, como a que ora faço, não alcança. E tem mais: ainda que Pet seja de fato um cachorro recolhido por ela, um animal real com o qual ela vive, nada impede que o comportamento dele seja, antes de tudo, uma projeção dela. Pet está sempre sendo repreendido, como se fugisse ao controle de Rita. Essa atitude manipuladora de Rita não abriria possibilidades de uma leitura retroativa sobre a sua relação com a mãe, André, Pedro e o amante deste? Para não abusar da hermenêutica, apenas deixo no ar essa questão.
         O centro da narrativa – qual seria efetivamente a parte nuclear do romance – é outra discussão que merece ser revista. Acredito que seu romance, Rinaldo, se insere em todo um conjunto de narrativas sincopadas que não admitem mais uma diretriz única. Convém lembrar que as categorias centrais das artes (enredo, figuração, melodia) foram muito questionadas no século vinte, ao ponto de se falar de romance arrizomático, narrativa descontínua, pintura abstrata, música atonal, o que não significa apenas quebra da linearidade temporal. Na relação entre as partes de uma narrativa, os núcleos de seu romance não só apresentam uma conexão muito importante, como também, paradoxalmente, o leitor pode isolar e ler algumas partes sem relação imediata com as demais. Essa ausência de centralidade já existe desde as vanguardas históricas e nada impede que seja retomada em uma obra do século vinte e um, em função de outras problemáticas. Quanto mais o leitor mergulha na singularidade do texto, inclusive do ponto de vista temático, mais percebe as diferenças que devem ser exploradas. Pécora, entretanto, procede por abstrações que passam ao largo dessa singularidade, ignorando, pois, o que Adorno chama de “não-idêntico” como um distintivo das artes e do pensamento crítico. Com base nessa lição de Adorno, pode-se chegar a resultados críticos notáveis, como a identificação de formas diversas de relação causal entre as partes de uma obra. Por exemplo, entre uma parte e outra pode não haver uma causalidade seqüencial em termos de fatos, na forma vista por Aristóteles, mas pode haver uma causalidade simbólica, marcada por mediações sutis que podem até não ser assimiladas pelo leitor. Acredito que o seu romance, Rinaldo, sobretudo nas aproximações mais irracionais de Rita com o cachorro, contempla essas duas formas de causalidade – uma imediatamente perceptível, outra que depende, quiçá, de uma leitura da simbólica do texto.  Assim, com a incompreensão dos núcleos de seu romance (que constituem entre eles, apesar das digressões, uma notável concatenação), Pécora mostra-se bastante apressado. Por exemplo, uma digressão bem construída não é mera questão de estilo ou de extravagância, mas um conjunto de disparidades que revelam o estado interior do personagem. No seu caso, Rinaldo, a condição psíquica e existencial de Rita pode ser lida literalmente pela temática, mas também pela própria linguagem confusa, sem interlocução humana, sem mecanismo catártico e ilusório que seja suficiente para a superação das tensões. Após os assassinatos, a catarse de Rita, ironicamente, é o diálogo com o cachorro, o que revela sinais de incoerência mental da personagem, incapaz de realizar um dos mais primários atos humanos: a comunicação. Com esse deslocamento insano, acredito que o título do romance, Rita no Pomar, já funciona como uma prolepse irônica da situação retratada. Esse aspecto simbólico – e também fundamental – não é apreendido pela resenha de Pécora.
         Como afirmei no princípio, Rinaldo, a resenha de Pécora tem um saldo positivo. Talvez sem o querer, ele descobre uma categoria analítica em seu romance: a possibilidade de peripécia sem expectativa de desfecho. (Deixando de lado algumas palavras dúbias e intenções possivelmente irônicas, o que ele afirma acaba constituindo, de fato, um reconhecimento positivo.) Isso se casa perfeitamente com o que tenho chamado de “tensão não-progressiva” (ver o ensaio “A consagração da impertinência”, no livro Machado de Assis desce aos infernos.) Esse paradoxo estrutural, próprio de enredos não-aristotélicos desde Joyce (talvez antes), aparece não apenas no seu romance, mas em vários de seus contos, o que merece ser examinado com mais cuidado como uma constante, ou uma dominante, no dizer dos formalistas russos. Se minha intuição estiver certa, essa preciosa categoria poderá revelar desde a função textual e intransferível da questão até a filiação de sua obra a uma tradição já consolidada na modernidade. Evidentemente, o reconhecimento dessa filiação não pode abdicar do exame das singularidades do texto, sob pena de mera classificação formal e vagueza conceitual.
         Por fim, caro Rinaldo, gostaria apenas de acrescentar que a discussão da resenha sobre “novidade” é inteiramente improfícua. Que tipo de novidade o resenhista procura? Qual o grau de novidade – e em que aspectos – uma obra pode comportar, por mais complexa que ela seja? Sempre que me reporto a isso, lembro de um dos maiores romances do século vinte: Doutor Fausto, de Thomas Mann. A leitura desse romance mostra o quanto ele é inovador na temática, sobretudo na relação entre literatura e música erudita, assim como no pioneirismo de inverter as ambições do Fausto de Goethe e relacioná-las não mais à submissão de um indivíduo ao demônio, mas de toda uma nação a um projeto político criminoso: o nazismo. Entretanto, Doutor Fausto, apesar da extrema complexidade do tema, não se filia a Joyce, a Virginia Woolf, a Beckett, parecendo muito mais, em termos de opção técnica, com os romances realistas do século dezenove. Essa aparente contradição, a meu ver, em nada diminui Thomas Mann. Assim, convém indagar se esse critério de busca por novidades – sem deter-se na qualidade intrínseca da obra – não se tornou um apriorismo dogmático de certos críticos. Caso eu tenha razão, essa busca por novidades como pré-requisito necessário para apreciação de uma obra, tão saturada ao longo do século vinte, não tem nenhuma novidade.






Arturo Gouveia é professor da graduação e da pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor dos livros de contos O mal absoluto (1996) e A farsa dos milênios (1998), ambos pela Iluminuras. E-mail: arturogouveia@terra.com.br

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