sábado, 18 de setembro de 2010

Texto de Félix Maranganha

Poesia e Sacanagem

O amor, ou o sexo, se assim o preferir o leitor, nem sempre enfrentou a série de interditos que a cultura ocidental a ele dedica. O sexo é um processo natural da nossa espécie, faz parte de nossa natureza, e nosso comportamento em torno dele é produto de nossa própria evolução enquanto espécie. Negá-lo é negar o que somos, uma vez que toda a nossa cultura gira em torno dele. É bom ou ruim? Nem um nem outro, é fato! Mesmo assim, parece que a literatura ocidental, e muito da oriental também, reservaram-se muito ao tratar do assunto, geralmente tratando-o como um jogo sem ética, ou como algo nojento, e por vezes algo sagrado demais para ser posto na linguagem comum. Um dos efeitos desse pensamento foi o surgimento do palavrão. O palavrão é um fenômeno que diz respeito apenas ao mundo ocidental e, posteriormente, a suas derivações culturais no Oriente. Não significa que interditos similares não existissem em outras épocas e lugares, mas o interdito recluso apenas à esfera das coisas do Baixo Corporal (qualquer coisa do umbigo para baixo) é um resultado direto da demonização do sexo, da valorização do sofrimento e da ideia que o prazer é pecaminoso, pensamentos iniciados em meio à cultura católica da Idade Média.

Apesar de acharmos que isso se deveu a uma intromissão da cultura romana no Cristianismo, observemos que os Romanos, assim como os Indianos, tinham predileção por imitar seus mestres gregos nas artes e no pensamento. Para tanto, segundo o pesquisador de cultura e religião indiana, Fabrício Possebom, obras como o Ramayana (Índia) e a Eneida (Roma) são imitações em estilo próprio das linhas narrativas da Ilíada e da Odisséia (Grécia). Assim como tivemos na Grécia a presença de Safo, tivemos em Roma o poeta Ovídio, e na Índia o poeta Vatsyayana. A lista seria longa e exaustiva, por isso vamos nos concentrar apenas em uma dessas correlações: o Kama Sutra.
Uma das muitas posições
sexuais listadas no Kama Sutra

Apesar de ser mais conhecido no Ocidente como o manual indiano do sexo, o Kama Sutra, do poeta Vatsyayana, não é um livro sobre o sexo apenas. É um verdadeiro tratado sobre o amor e tudo aquilo que ele representa. É um longo poema cujo tema central é ensinar a gerir as relações interpessoais e familiares, e no qual o sexo e suas famosas posições representam apenas o sexto capítulo. No original, o livro é constituído de onze capítulos, que são: Prefácio – é uma das primeiras obras da história a apresentar um prefácio –; Da Conquista do Dharma, Artha e Kama; Das artes e ciências a serem estudadas; A vida de um cidadão; Dos tipos de mulheres procuradas pelos cidadãos; Da união sexual; Da aquisição de uma esposa; Da esposa; Das cortesãs; Dos meios de atrair os outros. O Kama Sutra é, antes de mais nada, um manual não do sexo, mas da própria sexualidade como um todo.

Embora seja o mais famoso manual de sexualidade, o Kama Sutra é, antes de tudo, um poema. Em estrutura, é bastante similar à Arte de Amar, do poeta romano Ovídio, e ambas as obras possuem muitas citações, veladas ou não, da poetisa grega Safo, que viveu na Ilha de Lesbos no século VII a.C. Semelhanças à parte, o Kama Sutra é mais que um livro sobre relacionamentos, é um grande poema didático sobre as relações humanas. Como se diz no próprio livro:

O homem deve estudar o Kama Sutra e as artes e ciências que lhe são subordinadas, além do estudo das artes e ciências contidas em Dharma e Artha. Até mesmo as jovens donzelas devem estudar os Kama Sutra, juntamente com as artes e ciências acessórias antes do casamento e depois, se seus maridos consentirem.
(Kama Sutra, III, 1).


Logo depois, listam-se dezenas de disciplinas, entre as quais Química, Música e História. Obviamente, muito do que se trata ali é típico de uma cultura hindu, e específico a uma classe social e às castas superiores. Vemos no Kama Sutra as diferentes condutas para mulheres donzelas e mulheres defloradas em meio à sociedade, além de todas as ciências que tanto homens como mulheres devem dominar. O sexo é tratado de forma ritual, vinculado ao ciclo de renascimentos, ou Karma, e como algo sério, que deve ser aprendido com um mestre para melhor proceder.

A diferença entre essas culturas não ocorre apenas na esfera cultural-religiosa. Historicamente, os deuses da natureza e da criação na Índia foram bruscamente substituídos por versões mais atraentes, como deuses da fertilidade e da vida – todos eles representações do deus Kama – em torno do século III d.C. O resultado foi uma maior tendência à erotização de sua teologia, que permanece até os dias atuais. Essa erotização do culto foi tamanha que, entre os séculos IX e XIII d.C., os governantes locais acharam politicamente favorável seu reconhecimento. A Índia fez, portanto, o movimento de contramão em relação à cultura ocidental, e em vez de banir os costumes do povo – prática comum e geradora de interditos – resolveu corroborá-los e assumi-los. Assim, funções como as prostitutas ganharam concepções distintas em ambas as culturas. A prostituta ocidental é uma mulher profana, e um objeto de uso e descarte. A davadasi é uma prostituta oriental, sagrada, e de papel ativo tanto político quanto religioso, na cultura indiana.

Por isso, apesar de existirem interditos linguísticos na Índia – quase todos vinculados à esfera ritual, com datas para acontecer e ligados à uma relação de classes – não há palavrões, ou seja, não existe na Índia e na maioria dos países cuja história encarou o sexo como algo natural a palavra que liga-se à ideia de pecado e, ao mesmo tempo, à ideia de sexo. Sexo é sagrado, e é respeitado como tal.

O que aconteceu no Ocidente, porém, foi uma ruptura histórica com a cultura do sofrimento da Idade Média, e pregada pelas religiões monoteístas como o Islamismo, o Judaísmo e o Cristianismo. Essa ruptura fez as pessoas buscarem elementos mundanos com os quais identificarem-se e, num processo de reequilíbrio, exageraram um pouco em concepções sexuais, teológicas e linguísticas, o que levou à má interpretação no Ocidente do Kama Sutra como um manual de posições sexuais. Mas todo processo de reequilíbrio tem dessas coisas mesmo.

FONTE: http://www.assassinador.blogspot.com/

Nenhum comentário:

Postar um comentário