Interessante como existem textos que surgem diante de nós sem que percebamos isso. Em meados de 1999, na UFPB, entrando em letras, eu, que ainda era um jovem mané e desconfiado do interior, conheci o poeta Jairo Cézar. Ele tinha uns versos para mostrar que, a princípio, gostamos, mas era só uma brincadeira. Com o tempo, criamos um jornal literário na universidade para postar nossas opiniões literárias, e mais ou menos o que pensávamos da arte. Ali, naquele jornalzinho, vi os primeiros versos de Escritos no Ônibus saltarem para o mundo público. Não demorou muito, e tivemos contato com gente de renome na poesia e na literatura, como Sérgio de Castro Pinto, Astier Basílio, Linaldo Guedes Aquino e Arturo Gouveia. Logo fui convidado por ele para escrever o prefácio de seu livro. Inicialmente era proposto fazê-lo como livro artesanal, ou produção independente em uma gráfica, mas, em 2007, inscrevendo-o em um concurso da Funjope, Jairo ganhou a publicação, ao lado de Archidy Picado Filho. O livro só saiu agora em 2010, mas valeu à pena o esforço e a espera. E com meu prefácio nele!!!!!! [risos].
Como ainda não li Archidy completo, optarei pelo silêncio, ficarei com a crítica somente sobre o cabra de Sapé. Nascido em espírito na cidade onde o poeta Augusto dos Anjos nasceu em corpo, Sapé, Jairo Cézar logo nas primeiras linhas de seus poemas apresentava um estilo similar ao de Augusto dos Anjos, com uma linguagem marcante, escatológica e satírico-pessimista. Por outro lado, Jairo começava a misturá-lo com algo próprio, num usar das palavras que o fazia marxista, materialista, espiritual e completamente engajado em termos de política, história e cultura. Jairo é panfletário? É, sim senhor! Mas não há nada de errado em ser panfletário. Outros autores com quem cheguei a entrar em contato, alguns até com livros publicados, não são poetas, mas apenas escritores. Pessoas que já li, como escritores dos ramos de fantasia, policial e ficção científica no Brasil, são apenas escritores, distantes que estão de serem poetas. Alguns que escrevem bem até consideram o panfletarismo maléfico para a literatura, como um escritor e crítico dono de comunidades de Orkut, mas é assunto para uma outra postagem aqui. Assim como você escreve uma carta, uma resposta numa prova ou o próprio nome, esses escritores escrevem contos. Querem ganhar público e participar da mídia, não fazer arte (isso também assunto já de outras postagens aqui).
Não é o que acontece com o poeta paraibano, pois sua preocupação é escrever versos, e fazer poesia. Por isso resolvi reler os poemas dele, e dessa vez em livro publicado, e percebi que algo mudou. Não somente a ordem dos poemas influi na interpretação dos mesmos, como também a idade em que os lemos. Quando li O Capital pela primeira vez, no jornalzinho Os Renegados, tinha um espírito mais politizado e engajado, e interpretei como um manifesto político, uma profissão de fé de um poeta. Hoje, relendo, a idade me obrigou a interpretá-lo de outra forma, como um pedaço das angústias de um poeta à procura de sua inspiração num mundo capitalista. Ao ler Baba concreta n'Os Renegados, entendi uma revolta à forma como Amador Ribeiro Neto entendia a poesia. Hoje, não consigo deixar de conceber ali uma homenagem.
Jairo consegue mesclar duas coisas que são essenciais na poesia, e que acho bastante caras quando me deparo com as músicas das massas. Ele é simples de entender, mas profundo em deixar marcas. Como eu e alguns outros membros d'Os Renegados, Jairo veio do interior, e teve contato com poetas não canônicos da poesia oral desde cedo. Não só Augusto dos Anjos tornou-se seu mestre lírico, como também Zé Limeira, Zé da Luz, Zé Laurentino, Chico Pedrosa, Leandro Gomes de Barros e muitos outros. Daí podermos observar nele poemas como Latifundiário que utiliza-se de um acróstico, recurso muito usado por poetas orais e cordelistas. Isso explica coisas como o Pseudo-Poeta Ecumênico:
Ah! Se soubesse eu poetar.
Poetaria não as belas coisas,
Mas as mazelas, as pestes e as doenças.
Musicaria dissabores, tristezas e as crenças
Mais esdrúxulas e as dores mais intensas.
Em minha lira caberiam só feiúras.
Ódio, rancor, traição e sem candura
Versificaria os filhos do horror, dos estupros
E da'margura.
Poria em rima todo corpo putrefato
Que se encontra no universo.
E uma vez meu livro aberto,
Libertar-se-ia toda podridão que já é fato.
Metrificaria o imetrificado.
Toda bruxaria, transgressão e o pecado.
Por fim, cuspiria no amor, na beleza, no leitor
E no sagrado.
O poema acima, que por muito tempo eu chamei de Salmo Profano de Jairo me marcou profundamente. É uma profundidade conceitual grande que não observei em outros poetas locais, e muito menos em escritores de outras regiões como São Paulo e Rio de Janeiro. Jairo, desde sempre, nunca preocupou-se em conquistar um público-alvo, ele só mirou em externar suas angústias, tanto que nunca aprendeu a metrificar um verso, e o único soneto quase perfeito dele que já li na vida veio depois de quase um ano de esforço. Mesmo assim, ele demonstrou possui domínio em algo ainda melhor que a métrica, que a forma: ele consegue dominar palavras, como um vaqueiro que domina um burro-mulo brabo com cabresto e pulso firme.
FONTE: http://www.assassinador.blogspot.com/
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