quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Poema de Lúcio Lins

Maria das Águas


eu sou
Maria das Águas
nome e fado
que a mim
me foram dados
pelo movimento
dos barcos

eu sou
Maria das Águas
desde Maria menina
quando só Maria
e ainda
pelo mangue
sob os céus
brincava
de transportar nuvens
em barcos de papel

dos meus
nada sei
salvo o talvez
tenham ido
nos barcos de antes

e tenho
uma vaga
na lembrança
que ainda de laços
sargaços e transas
já tentava esse mar
sem ser de mãos dadas

a cada maré
que vinha
Maria eu ia
tomando corpo
e o cais
tomando gosto
pelos prazeres Maria
que ao porto
fui servindo
antes do vinho
da primeira sangria

e foram tantos
quantos os barcos

que a mim
me chegaram
com suas almas
nos mastros hasteados

e foram tantos
quantos os barcos
que em mim
me deixaram
sem velas
e com enjôo dos mares

me chegavam
com suas falas
diferentes
com seus falos
urgentes
e me vestiam
a rigor
para suas fantasias

eu me despia
eu me vestia
eu me trocava
(enquanto suas mãos
em meu corpo
faziam cruzeiros
eu contava estrelas)

onde sou lodo
fui veludo
leito de tantos
deleites
pelos quatro
cantos do porto
para os quatro
cantos do mundo

confesso que vivi
confesso que bebi
goles e goles
de mar
até o mar derradeiro
ate saber-me sozinha
até beber-me Maria
garrafa sem mensagem

de mim
todos os barcos

já partiram
e eu sou só ruínas
de um corpo antigo
onde marujos
saciaram suas sedes
aos beijos
do gargalo
de minha boca

resta
em mim
o que esqueceram
em mim

as marcas
de mastros e dentes
a ferrugem
das âncoras tatuadas
um iceberg
no copo d’água
e o endereço de um mar

veio de mim
esse mar
que hoje bebo

veio de mim
esse mar
de amar sobejo

veio de mim
ser Maria
Maria das Águas

Maria que canto
encontro
de sede e água

e quando rio
eu rio doce
arco-íris nos lábios

Maria que canto
com os olhos
que olhos d’água

e quando rio
eu rio doce
orvalho na lágrima

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