Bem-humorada radiografia do ser
Mercedes Cavalcanti
Com o título A idade do bobo, Chico Viana, bem-humoradamente, transmuta o supostamente digno e potente paradigma do lobo feroz na figura grotesca do bobo. O “lobo” corre, vai à caça. O “bobo” fica, reavalia seus sonhos, alvos e projetos, questiona os fatos vividos e os fatos hodiernos; compara valores antigos e valores atuais e questiona uns e outros, inclusive a existência humana.
Ninguém imagine que se deparará com exemplos arquetípicos do homem maduro que encalça a presa, visando, desesperadamente, satisfazer sua autoafirmação masculina abalada pelo medo da velhice. A presa de Chico Viana transcende o invólucro carnal. Vai ao âmago do ser, à sua busca desesperada por dar sentido à existência. Num estilo versátil, ora envereda pelo poético, em trechos que caberiam no sortilégio encantatório que emana dos textos de Crispim, ora assume a feição irônica, cáustica, corrosiva, de um Machado de Assis – autor que o cronista cita constantemente. Em Divino Vinho, eleva o leitor ao cimo do lirismo, a uma espécie de catarse poética, ao definir o vinho como “a culminância, a redenção, a prova de que a experiência com as outras bebidas não passa de um estágio às vezes doloroso rumo à transcendência”.
Se de um lado, o cronista fotografa fatos e circunstâncias, doutra parte, sem eufemismos, faz uma radiografia, abrindo (e pisando) as feridas sob o crivo de seu olhar, descobrindo e escancarando pontos nevrálgicos da condição humana. Assim, em Palavreando, denuncia, munido de uma contundência acachapante, a corrupção vigente: “Buscar decência na política é como procurar castidade num prostíbulo”. Ainda, num viés talvez ainda mais machadiano, diz: “Uns entram nas academias para conquistar a imortalidade. Outros, para confirmar que estão mesmo mortos”. Suprassumo da mordacidade irônica!
Posto que dê vazão à liberdade, mormente no âmbito das ideias, transita num espaço vigiado, com relação à língua portuguesa. Povoam seu livro crônicas como Traição (que faz um paralelo entre a infidelidade vernacular e o adultério); O Poder da Frase (que discorre sobre a correção da língua escrita, seja na vida, seja na morte); Alienação Gramatical, O Sol Nasceu e Solecismo amoroso, onde é narrada uma deliciosa história de amor em que, ironicamente, o casal se separa por pura incompatibilidade vernacular. Aliás, o livro é uma aula de bem escrever!
Costurando suas ideias, posicionamentos e visão de mundo com argumentos ora filosóficos, ora psicologizantes, há momentos em que, revelando ceticismo, faz troça da incoerência humana, que se patenteia em diferentes facetas ao longo das gerações. Usa e abusa dos trocadilhos, paradoxos, às vezes superpondo-os, como num estilo barroco às avessas, onde o intuito não é rebuscar, mas, justamente, retirar a maquilagem, alcançar a nudez das coisas. Senão, vejam-se as citações que seguem, inseridas em Eufórica alienação: “Os jovens da minha geração falavam obsessivamente em derrubar o regime. Hoje todos exaltam o regime, desde que ele nos liberte do excesso de calorias”. Ou, ainda: “Pecado agora não é contestar as certezas do materialismo dialético; é ignorar os malefícios da gordura trans”.
Por tudo isso, a derradeira obra de Chico Viana, A Idade do Bobo, não tem nada de boba. Antes, trata-se de um livro que transporta o leitor a elucubrações sagazes e que bem poderia intitular-se – parafraseando Jane Austin – A Idade da Razão e Sensibilidade.
Em tempo: o novo livro de Chico Viana será lançado na noite de hoje, no Terraço Brasil
Em tempo 2: Chico Viana é um especialista em Augusto dos Anjos e intelectual de marca maior.
FONTE:http://linaldoguedes.blog.uol.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário