sábado, 17 de setembro de 2011

A leitura enquanto direito social e as políticas para o livro no Brasil.



Por Lau Siqueira
Na abertura da XV Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, a presidenta Dilma Roussef falou do programa de popularização de livros que será apresentado nos próximos dias pelo Governo Federal. “Queremos ter uma ação que fomente a produção e comercialização de livros mais baratos”, falou a autoridade máxima do país. Um discurso que, aliás, muito nos orgulha porque certamente está na leitura enquanto política pública, uma das chaves para darmos um salto nas políticas sociais. Não há dúvidas que o governo brasileiro deu passos importantes em direção à construção de uma sociedade leitora, de 2003 para cá. Todavia, como era de se esperar, o mercado do livro é um manto de silêncios estrategicamente constituídos. Por exemplo, a isenção de impostos sobre o livro – obra do presidente Lula – já deveria ter derrubado os preços naturalmente. Mas isto não aconteceu. A imensa quantidade de livros adquiridos pelos governos federal, estaduais e municipais também deveriam ter garantido o “equilíbrio do caixa”. Mas, também isso não aconteceu. O mercado tem a ousadia de partir para a arenga alegando que o custo das edições se torna elevado por conta das baixas tiragens. Pura balela. Ignora a lei da compensação. Muitos dos livros livros com tiragens altíssimas comprados pelos governos, nas estantes das livrarias, não apresentam abatimento algum. Portanto, se quisermos redução no preço dos livros não podemos entender a fração monopolista do mercado livro como aliada, mas como um ganancioso tubarão atento às menores possibilidades de engorda dos pequenos peixes - especiaria para a gula dos acionistas. Entendo que Dilma tem boas intenções ao propor a queda do preço dos livros, mas vamos errar mais uma vez se a proposta contenha subsídios ao ganancioso mercado do livro. O senhores de engenho do mercado não estão nem um pouquinho interessados nos benefícios do crescimento dos índices de leitura. Muito especialmente da população pobre deste país, excluída de todos os processos de desenvolvimento.

No paralelo, os eventos literários até que tentam fomentar essa política de democratização da leitura. No entanto na maioria das vezes os eventos são focados no autor e nas suas necessárias (mas, particulares) trocas para a literatura contemporânea brasileira. O leitor raramente vem sendo discutido nas mesas das Bienais, Feiras do Livro, Festas e encontros literários. É como se fosse um tabu caber logo ao imantado reino dos escritores colocar o pé ensaboado de sabedoria no mangue dessa discussão. Os escritores, em sua maioria, não gostam do tratamento fúnebre dado pela maioria das editoras. Mas, se fazem de mortos quando se fala em políticas de leitura. Se não interessa o assunto, então, por que continuamos publicando? Por que, muitas vezes, publicar de forma subsidiada pelos programas públicos e fundos de cultura e colocar à venda obras com preço de capa que muitas vezes correspondem ao mais ganancioso nicho do mercado do livro?

Independentemente das boas atitudes do governo federal e de bons caminhos traçados por muitos órgãos governamentais de norte à sul, a democratização do acesso à leitura talvez nunca tenha sido tão fomentada em nosso país. Pelo menos não que tenha lembrança em meus cinquenta e vastos anos vividos. Aqui e ali encontramos ações absolutamente militantes de pessoas e grupos de pessoas que se comprometem com as políticas de acesso ao livro e à leitura. Pasmem, não raras vezes, sequer livros disponíveis para uma ação mais consistente existem. Já presenciei oficinas de leitura com livros emprestados. Livros buscados em doações e muitas vezes em bibliotecas comunitárias. É como se existisse uma onda natural em contraponto aos interesses meramente capitalistas do mercado. Um vento híbrido alimentando uma corrente de pessoas que acreditam nas possibilidades transformadoras das políticas de leitura. É como se estivessemos formando um determinado consenso nas razões de acesso ao livro e, mais que isso, no acesso à compreensão e transformação do mundo a partir da leitura. Logicamente que poderíamos ter um impulso mais qualificado se o Ministério da Educação não entendesse os processos educativos apenas dentro dos muros escolares. É como se faltasse utopia. Afinal, a vida não se resume em práticas pedagógicas que não compreendam o jovem, principalmente, como um ser integral que precisa ser abordado a partir do território que habita e das possibilidades de construção de uma identidade cultural dentro de um processo de transformação da realidade vulnerável em que ainda se encontra a mairia do povo brasileiro.

Essas experiências tem nos demonstrado que a leitura não é um ato passivo. Também tem demonstrado que existem linguagens que podem e devem ser incorporadas nesse processo. A arte é o meio e a mensagem na maioria das vezes. Os escritores precisam compreender que a literatura é apenas um dos elos e não o principal elo nessa cadeia e que o leitor é um sujeito ativo que do texto extrai variantes e constrói complementariedades. No caso da literatura isso se referencia mais concretamente nas construções humanas e cidadãs. O leitor começa a ser percebido como uma espécie de co-autor, capaz de promover intervenções positivas ou negativas no texto. Esse é, na verdade, o ponto g da razão de brigarmos por políticas de leitura porque ao produzir o leitor crítico estaremos erradicando o analfabetismo funcional que hoje coloca em cheque o papel de determinadas universidades licenciadas pelo Ministério da Educação e que mais parecem shoppings de diplomas variados. O leitor crítico, por sua vez, exigirá da literatura e mesmo da produção acadêmica algo mais denso que a vaidade pessoal do autor.

Os modelos formais das bibliotecas, apesar de ainda necessários, não atendem mais as demandas diante de uma verdadeira fome de leitura que se descobre cada vez que desencadeamos um processo de fomento. Os espaços austeros acabam inibindo o pretenso leitor e desacatando os procedimentos pedagógicos das políticas de leitura. Estas políticas, ainda bem, guardam-se diante de uma diversidade que passa por processos de contação de história, leituras silenciosas ou saraus e se alimentam de esperanças em eventos que se já se transformaram em políticas públicas como a Jornada Nacional de Literatura realizada em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Um evento que, aliás, determina a economia da cultura na cidade e traz ao povo gaúcho o orgulho de guardar a cidade com o maior índice de leitores do País. A Jornada fez de Passo Fundo a Meca da leitura brasileira. Aos modelos tradicionais de biblioteca que muitas vezes acabam reproduzindo-se de forma equivocada nas escolas, em amontoados de livros numa sala empoeirada e geralmente guardada em camisa de força. Essa realidade, também, nos faz acreditar que precisamos mesmo é de “bisbilhotecas”. Lugares em que os jovens sejam acolhidos para a leitura e que isto não seja uma obrigação para o currículum escolar. O livro deve ser apresentado como véu de possibilidades e não como algo sagrado, intocável. Também é preciso que se confidencie ao jovem leitor que o livro impresso na era tecnológica não é a única possibilidade de leitura. Também é preciso dizer que os velhos e mofados modelos de museus, bibliotecas, casas de cultura... não são mais os únicos. O mundo tomou rumos depois da invenção da roda. Só as pedras não pensam... mesmo assim, nos levam a refletir poeticamente - a partir de Drummond - quando estão no meio do caminho.

Mais além, precisamos repensar, inclusive o modelo de ensino da literatura especialmente no segundo grau que ao ser focado na prova do vestibular passou a produzir um certo desprezo até mesmo pela história da literatura que foi sendo arbitrariamente fatiada e descontextualizada, provocando muito mais rejeição que interesse até mesmo pelos grandes clássicos da nossa literatura, como Machado de Assis. Precisamos ainda pensar as políticas de incetivo à leitura de forma universalizada e não a partir de interesses de frações do mercado ou mesmo de afirmação corporativa, seja dos escritores, seja de pequenos livreiros, editoras independentes, bibliotecários ou outros segmentos que acabam sofrendo juntos mas não condicionam suas ações para um gozo coletivo. Se algo de bom precisa acelerar, precisamos incorporar as ações de leitura - não apenas do ponto de vista pedagógico - como uma ação cultural determinante, estruturante para que outras políticas de inclusão tenham um tratamento mais qualitativo e operem de forma natural uma despedida dos modelos sociais em que até mesmo a leitura fazia parte da opressão de classe, de gênero e de raça, por exemplo. Queremos sim uma política de leitura que seja, sobretudo, libertadora e cidadã.

A pesquisadora francesa Michèle Petit, no livro “Os Jovens e A Leitura” destaca que uma das lições da leitura é nos ensinar que “antes de pertencer a este ou àquele território, somos seres humanos”. Portanto um jovem morador da comunidade Novo Horizonte, em João Pessoa, precisa antes de tudo ser levado também a fazer uma leitura não apenas dos livros, mas da sua realidade que não é diferente da realidade de jovens da periferia de uma cidade qualquer da Argélia, da Colômbia ou mesmo de Nova Iorque. “Miséria é miséria em qualquer canto”, cantam os Titãs. Portanto, a experiência do pertencimento, depende de uma relação objetiva com o território e, sobretudo, com a consciência de que a leitura não passa de mais um dos direitos fundamentais de cidadania e, segundo Antônio Cândido – referindo-se especificamente à literatura – um dos direitos humanos. A leitura deve ser vista, nesses casos, como uma ferramenta de transformação da vida a partir de um olhar para as tribos nas quais estamos inseridos, muitas vezes à ferro e fogo pelo sistema capitalista.

Entrementes os tempos são realmente outros e os ventos sopram a nosso favor. Não dá para caminhar sem utopia. Não dá para ser feliz sem horizontes. Experiências consolidadas nos mais distantes rincões brasileiros nos arrancam do ostracismo para um otimismo que nos leva, sobretudo, à emissão de reflexões capazes de nos levar a dar passos mais largos para perspectiva de uma sociedade leitora. Os números atuais são favoráveis, conforme atesta a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, organizada e publicada pelo hoje presidente da Biblioteca Nacional, Galeno Amorim. Os indicadores nos mostram que o Brasil (a pesquisa é de 2007) já possui 95 milhões de leitores. E o que precisa ser destacado é que a nossa elite intelectual não é a mesma elite econômica, como em alguns países. As classes C e D representam 78% do universo de leitores enquando as classes A e B, apenas 19%. Este é um dado importante para sonharmos com a formação de um país leitor a partir das ações de base, das iniciativas de mudança de uma cultura não leitora mesmo entre a comunidade letrada. Mário Quintana já nos dizia que “o pior analfabeto é aquele que aprendeu a ler e não lê.” Haveremos de localizar e iluminar esse buraco que sempre é mais embaixo que imaginamos. Por enquanto nos resta ir aprofundando reflexões que nos permitam acreditar, por exemplo, que as classes C e D são mesmo as classes dominantes quanto aos índices de leitura e podem traduzir isso, quem sabe, numa democratização da economia capaz de interpretar (e rejeitar) o sentido de palavras como fome, analfabetismo e miséria que, aliás, são sinônimas. Para as mudanças necessárias a história está onde sempre esteve: em nossas mãos. logicamente, portanto, o assunto não se esgota por aqui.

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