Geopolítica Infantil
Colei o mapa-múndi na parede do meu
quarto. A professora devolveu ontem. Sou louco por mapas. Deles todos,
gosto mais é do mapa-múndi. Acho que Deus, quando fez os países,
desenhou eles assim, para que ficassem lindos. Tem país azul, verde,
vermelho, cor de pele. Meu lápis amarelo acabou quando pintei a Rússia.
Que país grande! Deve ter muito russo lá. Tem um monte de países
pequenos que o nome nem cabe dentro. O mais difícil foi pintar esses
paisezinhos da Europa. Pintei a Holanda por cima da Bélgica. Ia colorir
um de laranja e o outro de amarelo porque minha mãe falou que são eles
os países das flores. Sem querer, borrei a Bélgica de laranja e a
Holanda de amarelo, não deu para saber onde começava um e terminava o
outro. E para piorar, quando fui dividir eles com meu hidrocor preto, a
fronteira cobriu completamente os dois. Meu pai quando viu, falou: “Fez
bem, meu filho, esse preto lhes caiu bem”, não sei o que ele quis dizer,
nem perguntei. A professora gostou que eu pintei os mares e os oceanos
de verde, mas mesmo assim tirei nove. Queria tanto ter tirado um dez.
Chamei sem querer Antártida de Antártica, daí ela tirou meio ponto. Foi
culpa do meu irmão, ele teima em dizer que é assim que se escreve. O
outro meio ponto que eu perdi foi por causa Iugoslávia, que a professora
disse que se dividiu. Eu nem sabia, copiei do atlas da minha irmã. Se
fosse no tempo dela, eu ia tirar um dez. Esses países vivem o tempo todo
se dividindo. Perguntei ao meu pai o porquê da divisão, ele me disse:
“eles fazem isso para que todo ano a gente troque de livro”. Acho que
não, talvez esses países se dividindo seja uma coisa natural. Meu irmão,
por exemplo, está procurando uma casa para morar depois que casar. Eu
não queria que ele fosse embora, mas minha mãe me disse que a casa é
pequena para tanta gente. Ela tem razão. Deve ser por isso também que a
Iugoslávia se dividiu, acho que tinha tanta gente que não cabia em um
país só. A Bielorrússia deve ser dos russos belos que formaram o próprio
país. Isso a professora não me explicou. Mas não posso reclamar do meu
nove, se minha professora tivesse visto que eu matei os holandeses e os
belgas com uma pincelada, ia me colocar na recuperação. Deus me livre.
Os que ficaram, ela mandou decorar as capitais dos estados dos Estados
Unidos, de ontem para hoje. A professora da minha irmã não mandou
ninguém para recuperação e todo mundo ganhou uma bandeira do Brasil de
papel. Ninguém da minha turma ganhou a bandeira do Brasil. Não gosto de
bandeiras, nem de decorar capitais. Ainda bem que não fui para a
recuperação, foi chamada oral. A professora perguntou qual a capital do
Kansas. Ninguém acertou. Era Topeka e eu tinha certeza que era Oz. Então
onde é Oz? Será que é do lado de trás do mapa-múndi? Será que faz
fronteira com a Terra do Nunca? Ou com o País das Maravilhas? Meu tio
disse que esses países são alegorias. Será alegoria é algum tipo de
reinado, como a Inglaterra? Ou como Cuba? Quando eu crescer eu quero ser
rei de uma alegoria, os reis só morrem velhos. Não quero ser
presidente, de vez em quando tem um louco querendo matar os presidentes.
Eu acho que cada vez mais tem menos reis e mais presidentes no mundo.
Deve ser por isso que tem tanto louco no mundo. Deve ser sim. Tenho
tanto medo desses loucos, não sei por que eles fazem isso. Eu pergunto
ao meu pai, mas ele é sempre ocupado, nem sempre me responde. Quando não
está lendo jornais, está com os olhos nos telejornais, vendo esses
loucos. Nem liga para as minhas dúvidas. Também não pergunto a minha mãe
porque ela só sabe de flores, perfumes e remédio para dormir. Ela devia
assistir a mais telejornais, o sono do meu pai é admirável. Meu pai tem
sono de rei. Minha mãe, de presidente. Tenho medo de perguntar essas
coisas para a professora. Não sou o queridinho dela, desde o dia que
desrespeitei a oração. Mas quem ia agüentar? Ela trocou o pai nosso por
pai troço. Quando ela falou isso, quase que teve um treco, engasgou-se.
Não agüentei. Deus que me perdoe. Ano que vem vou fazer o catecismo,
talvez eu entenda de onde vem tanta devoção. Tem muita briga no mundo
por causa de pessoas que não respeitam as orações dos outros. Na TV, vi
que os loucos no outro lado do mundo matam uns aos outros por um lugar
bem pequeno, não entendo. Nem o nome do país consegui colocar dentro
dele. Por que Deus, que é o presidente do mundo, não divide esse país?
Não é simples?! É só passar um risco no meio. Fizeram isso na
Iugoslávia, deu certo. Ou por que não leva a metade deles para África?
Tem países enormes lá, muitos países com nome bonitos. Eu pintei um de
vermelho, ele tem o nome de República Democrática de alguma coisa. Acho
que lá os africanos vivem sempre na paz. Os únicos selvagens de lá são
os leões e os tigres. Mas meu pai falou que os holandeses ou os belgas
foram lá. Que bom! Se eles foram lá, devem ter deixado muitas flores na
África. Com muitas flores não há como nascer loucos. Deve dar muito
louco no deserto porque lá não nascem flores. Eles poderiam ir mesmo
para a África. Mas talvez esses loucos não possam ir lá por causa das
fronteiras que dividem os países. Aprendi que quando a gente vai de um
país para outro tem que mostrar um monte de documento. E muita gente não
tem como comprar esses documentos. Deus deveria dar esses documentos
para todo mundo, para que todos pudessem ir de lá para cá quando
quisessem. Esses loucos iam ver que tem lugares muito mais bonitos do
que o deserto sem flores pelo qual eles brigam. E se todos tivessem
esses documentos não teria sentido as fronteiras, não precisaria ter
elas. Todos os continentes seriam uma coisa só, um só país. Do mesmo
jeito que os mares e os oceanos são. Assim, sem fronteiras, o cheiro das
flores da Holanda e da Bélgica se espalharia por todo o planeta, e
contaminaria todos de amor. E além do mais seria mais fácil de fazer o
mapa-múndi, ninguém iria mais para a recuperação. Eu pintaria o mar de
verde e os continentes de rosa, a cor do amor. Assim, contagiados pelo
amor seria sempre carnaval. Viveríamos todos colhendo e vendendo flores,
porque todos iriam querer comprar para dar.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirJairo, esse Beto Menezes não nasceu pra brincar. O cara é f... com ph. “Geopolítica infantil” e “A sombra da cachoeira” são primores da nossa literatura, que não têm categoria literária definida, ora é conto, ora é poema, ora é crônica, mas tem muita categoria lírica. Já que a palavra da moda é imortalidade (kkk), para mim ele já está imortalizado com essas duas obras-primas. Abraços, mano. Paulo Emmanuel
ResponderExcluirGosto muito desse texto de Beto!
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