Suicídio sui generis
...nada disso
justifica.
O suicídio é
apenas uma pseudo-libertação.
- Schopenhauer -
A velha garrafa
térmica se escapuliu das minhas mãos, jogando-se ao piso de cerâmica. Dentro
dela tudo se quebrou, havendo aprofundamento em seu dorso e o líquido no seu
interior vazado. Estávamos, como sempre, só nós dois na cozinha. Morávamos
sozinhos. Garanto-lhes que não fui eu! Por que a mataria? Não era nova e nem
bonita, mas o que nela me importava era o conteúdo. Ela me dava de beber a pura
cafeína que matava a sede do nosso amor matinal! Era a sua alma fervente... negra,
eu sei, e depois, tão doce. Quando liberta, era sempre eu quem colocava doçura
naquela alma e a sorvia. Garanto que foi isso que motivou o seu suicídio.
Liberdade! Liberdade! Liberdade para uma alma cotidianamente sugada. Cansou de
alimentar o meu vício matutino. Tinha vezes em que a procurava à noite, mesmo
quando cansada dormindo no armário da cozinha. Perdíamos, então, o sono de tão excitados
que ficávamos. Quando a oferecia aos outros, tímida, secavam-lhe rapidamente a
alma do seu esguio corpo. Oferecia-lhe nem sempre só aos amigos. Vejo agora o
quanto isso lhe era humilhante, vergonhoso e até promíscuo. Servida de mão em
mão, de boca em boca, bebiam-lhe o que era o seu sangue, densamente negro. Devia sentir-se perseguida e sem alternativa de
fuga.
A garrafa não
era dessas novinhas e nem antiga demais pra ter sido de Aladim. Mas ela
satisfazia os meus desejos. E não eram só três desejos, não! Ela me vinha inteira,
cheia. Disponível o dia inteiro pra dela me servir. Mostrava-me sua obsessiva necessidade de eu sempre lhe provar, de
ter que me agradar.
Afora a busca
por liberdade, não acho motivos convincentes pra
esse suicídio. A menos que ela fosse ciumenta! Talvez num impulso de raiva ou para chamar a
atenção. Sentimento de abandono do seu parceiro. Se o era, nunca
demonstrou. Fui-lhe infiel, confesso. Bebia cafés, nem sempre com o mesmo
prazer por ela oferecido, nos bares, padarias e repartições públicas. No meu
trabalho traía-lhe em todos os dias úteis. Àquela garrafa térmica nova sempre
exposta na copa, tentadora... como resistir àquele apelo! Trazia-me pausa ao
desprazer de ser obrigado a fazer trabalhos meramente sistemáticos. Amante que,
igual a todas, servia-me apenas pra eu relaxar, desestressar, acompanhar-me nas
conversas frívolas com os outros colegas. Situação sempre vivenciada às pressas,
às escondidas, vá que o chefe flagrasse minhas assíduas visitas à copa!
Mesmo assim, não
acredito que o suicídio tenha sido pelo meu necessário assédio às garrafas
amantes. Provavelmente, seja pelo fato de que, nos últimos tempos, ela vinha
sentindo-se em estado de muito vazio. Eu passava a maior parte do dia fora,
saindo muito cedo, não tendo tempo pra preencher o seu interior. Resolvia-me na
rua.
Numa tentativa de se livrar dessa
extrema aflição e
desejo de escapar do sofrimento intenso da depressão, não viu outra coisa a fazer. Quebrar-se completamente por dentro, liberando-se
do seu próprio vazio.
E agora, sem
aquele doce café cafeinado, socorro-me àquela outra garrafa esquecida no úmido
porão. Tem que ser tinto, seco e com a temperatura ambiente.
do blog: http://talentoacelera.blogspot.com.br/
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