Por Chico Viana
Antes de
enfocar as representações alegóricas em Augusto dos Anjos, devemos precisar o
sentido com que, neste trabalho, designamos o termo alegoria.
Etimologicamente, alegoria significa “outro discurso”; do ponto de vista
retórico, ela consiste numa espécie de metáfora sucessiva, encadeada, onde
vários objetos ou conceitos no plano real aludem a idêntica seqüência no plano
figurado, ou poético. Lausberg a conceitua como uma “metáfora continuada como
tropo do pensamento” , ressaltando que, na alegoria, um pensamento é
substituído por outro, com o qual está ligado por uma relação de semelhança.
João Adolfo Hansen distingue dois tipos de alegoria – uma que ele chama de construtiva, ou retórica, e outra interpretativa ou hermenêutica . Enquanto a primeira constitui uma “técnica metafórica de representar e personificar abstrações”, a segunda, também chamada de “alegoria dos teólogos”, é antes um modo de interpretar os textos sagrados. Como tal, liga-se à hermenêutica sagrada; antes de ser expediente transfigurador do discurso, ela existe para sancionar um sentido prévio, absoluto, que em última instância a explica.
Das duas acepções do termo alegoria, interessa-nos obviamente a primeira. Ou seja, a alegoria como expediente retórico, caracterizado pela transposição contínua do sentido próprio no figurado. Dentro dessa conceituação genérica, centraremos nosso interesse num tipo especial de alegoria – o que foi praticado pelo barroco. Pois a ele, conforme demonstraremos, vincula-se grande parte dos procedimentos retórico-poéticos presentes em Eu e outras poesias.
Enquanto manifestação barroca, a alegoria se opõe ao símbolo e reflete a crise do sujeito após o período renascentista. Durante a Renascença prevaleceram, como se sabe, os ideais clássicos consubstanciados no humanismo greco-latino, do qual o símbolo era a típica representação. Suas características eram a clareza, a brevidade, a graça e a beleza. O símbolo era breve e claro porque representava “a idéia em sua forma sensível, corpórea” ; se o corpo podia traduzir o espírito, era porque a natureza, e com ela o homem, não se percebia culpada. O “símbolo plástico”, do qual o melhor exemplo é a escultura grega, traduz o acordo entre essência e natureza, alma e corpo; segundo Creuzer, citado por Walter Benjamin, ele reflete o momento em que “a essência não aspira ao excessivo, mas, obediente à natureza, adapta-se à sua forma, penetrando-a e animando-a” .
Esse acordo se quebra por força do pecado original. Devido a ele, o homem arrasta a natureza em sua queda, instaurando-se então a inconciliável dualidade corpo x alma. Correspondendo ao domínio do natural e do decaído, o corpo humano não pode mais representar um ideal de harmonia e beleza. E a essência, que antes nele se continha, perdendo o seu correspondente sensível, vai aspirar ao desmedido, ao excessivo. Nessa estética do desmedido e do excessivo, que caracteriza a alegoria, consiste a arte barroca. O excesso decorre do sentimento de desacordo, de diferença, cuja matriz foi a nossa primeira transgressão. Conforme nos lembra Rouanet, “...O saber do alegorista é um saber culpado. Ele quer salvar a criatura, embora saiba que ela é culpada, por causa do pecado original.” .
O excesso é, de fato, um elemento característico da estética barroca. Percebido como “ultrapassagem de um limite” , ele traduz a quebra da harmonia e do rigor que caracterizam o contorno, isto é, a medida pela qual se define a representação oposta, ou clássica. O barroco ou neobarroco, conforme nos ensina Omar Calabrese, é uma época da cultura “ ... em que (...) o prazer ou a necessidade é (...) tender para o limite e provar o excesso” , com vistas à contestação de um valor ou grupo de valores.
Culpa, excesso, desejo de construir uma nova ordem são marcas da poesia de Augusto dos Anjos, conforme procuramos demonstrar em nossa Tese, hoje livro, O evangelho da podridão . Nosso propósito agora não é investigar a melancolia do poeta, como então fizemos, mas apontar algumas imagens que, constituindo-se em representações alegóricas, vinculam-no à estética barroca.
Augusto um barroco? Um barroco fora de época? Ora, antes de ser um momento histórico datado, o barroco é uma ocorrência que se repete ao longo do tempo. Sarduy o define como “uma atitude generalizada e uma qualidade formal dos elementos que o exprimem” e reconhece, nessa perspectiva, que “...pode haver barroco em qualquer época da civilização” .
Conforme nos demonstra Walter Benjamin, melancolia e barroco se correspondem. O olhar barroco é também, como o olhar melancólico, dilacerado pela culpa. O melancólico, segundo nos instrui Freud, recrimina-se pela perda do objeto – e o barroco, pela visão e o reconhecimento de tudo o que, na história, é “prematuro, sofrido e malogrado”. No plano da representação barroca ou alegórica, marcado pela melancolia, a história se confunde com a natureza e aparece como “figuração de ruínas”; conforme observa Sérgio Paulo Roaunet, “...para construir a alegoria, o mundo tem de ser esquartejado. As ruínas e fragmentos servem para criar a alegoria” .
A representação alegórica, pois, constitui uma estética de fragmentação e de ruptura. O alegórico não persegue o harmônico, o sublime, o proporcionado; ele se volta para as coisas, para os objetos, que visa resgatar. E os resgata, justamente, constituindo-os em alegorias. É pela transfiguração alegórica que os objetos, por assim dizer, se salvam. Enquanto fragmentos, eles indiciam uma totalidade perdida, da qual o artista é nostálgico e que só se reconstitui no plano da beleza, ou seja, por intermédio da sublimação – já que, pela sublimação, o objeto adquire uma espécie de transcendência, scende a uma forma de absoluto. No caso de Augusto dos Anjos, a nostalgia da totalidade, ou mais propriamente da Unidade perdida, reveste-se de uma obsessão mística e se torna patente, por exemplo, na angústia com que ele procura “esse danado Numero Um/ que matou Cristo e que matou Tibério”.
Tentemos sumariamente apontar alguns exemplos de alegoria no poeta paraibano. Dentre as imagens por que ela se manifesta, destaquemos as que enfatizam a obsessão pela morte, a fratura do significante e, para usar uma expressão de Julia Kristeva, a “desconstituição da matéria” , já que o melancólico tende a projetar na natureza, nas coisas, a dissolução dos seus elos psíquicos.
A obsessão pela morte é um traço característico do alegorista. Segundo Walter Benjamin, “... a alegorização da physis só pode consumar-se em todo o seu vigor no cadáver.” . E Rouanet observa que “... a morte é o conteúdo mais geral da alegoria barroca; (...) o esquema básico do alegorista é transformar o vivo no morto.” . É próprio dele ver nos objetos as ruínas, e nas pessoas, a imagem do “cadáver potencial” que todos somos. E somos cadáveres potenciais porque a morte já está inscrita em nossas vidas, comprometendo-as desde o início. O olhar melancólico jamais se alheia dessa lúgubre evidência.
Augusto dos Anjos refere a obsessão com a morte em vários de seus textos, nos quais são visíveis tanto a recusa ao erotismo quanto a fixação no cadáver em que iremos nos transformar. Em “Apóstrofe à carne”, por exemplo, o eu lírico diz que, “ao (pegar) nas carnes do (seu) rosto/ (Sente) o fim da orgânica batalha:/– Olhos que o húmus necrófago estraçalha,/ Diafragmas, decompondo-se ao sol posto...” . Em “Mistérios de um fósforo”, escreve que “... (vê), como nunca outro homem viu,/ Na anfigonia que me produziu/ Noniliões de moléculas de esterco.” (p.176) . E adiante, no mesmo poema, remata: “... eu vejo enfim, com a alma vencida,/ Na abjeção embriológica da vida/ O futuro de cinza que me aguarda!”.
Um dos exemplos típicos de alegoria barroca está nestes versos de Cristoph Männling, que vê o mundo como “uma grande loja/ Um posto aduaneiro da morte/ Em que o homem é a mercadoria que circula/ A morte, a extraordinária negociante,/ Deus, o contador consciencioso,/ E a sepultura, um armarinho e armazém credenciado.” . Sem nunca ter possivelmente lido o poeta alemão, Augusto dos Anjos quase repete um dos termos dessa imagem, ao afirmar que “a morte .../ é a alfândega, onde toda a vida orgânica/ Há de pagar um dia o último imposto!” (p. 100). “Posto aduaneiro” em um, “alfândega” em outro – efeito de sombrias afinidades eletivas. Em ambos, a mesma idéia de que o imposto da vida é a morte, e de que esse ninguém vai conseguir sonegar. Melhor aceitá-lo, afeiçoar-se a ele, conforme o eu lírico de “Último credo”, que diz amar o coveiro, “ – este ladrão comum/ que leva a gente para o cemitério.” (p. 90).
Se o homem evolui para a morte, o corpo marcha para se transformar em esqueleto – em caveira. Daí outro traço característico do olhar alegórico, que é transpor a superfície corporal e se concentrar nas vísceras ou, sobretudo, nos ossos. Estes constituem o espólio a que a morte nos reduz. O esqueleto é concreção, limite, estágio último da “ultrafatalidade de ossatura” a que estamos submetidos; a personagem do soneto “Decadência” constata que, após haver perdido tudo, “... Só lhe restam agora o último dente/ E a armação funerária das clavículas!” (119). Esse tipo de representação envolve também o corpo feminino, cuja sensualidade exacerba a culpa do melancólico; Gustave Flaubert chega a confessar: “...A contemplação de uma mulher nua me faz sonhar com o seu esqueleto.” (14). E o próprio Augusto descarna o corpo da meretriz, radiografando-lhe o ato sexual na irônica e grotesca imagem que se segue: “Nesse espolinhamento repugnante/ O esqueleto irritado da bacante/ Estrala... Lembra o ruído harto azorrague/ A vergastar ásperos dorsos grossos./ E é aterradora essa alegria de ossos/ Pedindo ao sensualismo que os esmague!”. (p. 192).
Outro dos recursos usados por Augusto dos Anjos é a fragmentação do significante. Através dela, ressalta-se “... o princípio dissociativo e pulverizador, que está na base da concepção alegórica” . Julia Kristeva observa que o estrato fônico é particularmente adequado a traduzir as rupturas que, como inscrições intrapsíquicas, refletem o trabalho da pulsão de morte. O alegórico fratura o corpo da palavra, transferindo à corporeidade lingüística os estilhaçamentos de que, na sua ótica, é feito o corpo do mundo. Com o barroco, através da alegoria, a linguagem é levada antes a significar do que a comunicar. E a significação se consegue, basicamente, com a “antítese” entre som e sentido; com o excesso de forma interferindo, saturando o que se quer dizer. A poética de Augusto dos Anjos, conforme defendemos em nossa Tese, está marcada por um excesso de representação fonossemântica.
Através sobretudo das aliterações e das sinéreses, Augusto tensiona ao máximo a articulação fônica. Observe-se, no exemplo seguinte, como os grupos consonantais em /r/ parecem reproduzir o movimento dos ossos que dançam: “Os esqueletos desarticulados,/ Livres do acre fedor das carnes mortas/ Rodopiavam com as brancas tíbias tortas/ Numa dança de números quebrados!” (p. 72). Neste outro, onde ele acusa a chegada do “Filósofo Moderno”, a angustiante monotonia infernal nos é sugerida, ou reforçada, pelo excesso de fonemas /e/: “Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,/ Trazendo no deserto das idéias/ O desespero endêmico do inferno...” (p. 52). No exemplo seguinte, ainda, o afã lúbrico e pecaminoso do sátiro parece intensificar-se através da consoante gutural; a sua sensualidade “...Lembra a fome incoercível que escancara/ A mucosa carnívora dos lobos.” (p. 54).
Tratemos, para finalizar, das imagens de desconstituição da matéria. Em Augusto dos Anjos, elas em grande parte se inserem no domínio da doença, que parece acometer a matéria orgânica e inorgânica. Lacan nos lembra que o gosto pelo mórbido é característico do universo da falta; no contexto de Eu e outras poesias, as imagens que projetam a fragmentação no mundo natural, exterior, não são senão reflexos de um desmoronamento interior, o qual reflete a tirania do superego. O que primordialmente se desconstitui é a unidade psíquica do eu lírico, cujo estilhaçamento se reflete no corpo (como doença) e no mundo – no corpo do mundo, também este doente.
É no bojo de tais cortes que, ao símbolo, sucede a alegoria – a figura por excelência da ruptura e da crise. Atentando nas articulações simbólicas do processo, Julia Kristeva relaciona a fragmentação com o abandono do “Absoluto do Sentido” . A melancolia barroca ou moderna, segundo outra estudiosa francesa, “...nasce nessa grande cesura histórica dos séculos dezesseis e dezessete, onde a língua perde as suas referências ontológicas...” . Reduzida a um “molambo”, “paralítica” (para referir outra imagem de nosso poeta, no soneto “A idéia”) a língua não mais diz o ser. Estamos, pois, diante de uma crise do homem em face do Ser Absoluto, com o qual os elos, necessariamente simbólicos, foram cortados. Daí se vê que o barroco não se opõe apenas à Antiguidade greco-latina; opõe-se também à própria visão de mundo medieval, onde esses liames de alguma forma eram mantidos.
As imagens de doença e destruição disseminam-se ao longo de toda obra de Augusto dos Anjos. Destaquemos dois significativos exemplos: no final de “As cismas do Destino”, a impressão geral é de paralisia e desalento. Observe-se a referência ao “mecanismo moribundo” a que se reduz um mundo sem “teleolologia” ou transcendência. Observe-se também como as referências à “Natureza”, ao “ludíbrio” e ao “luto” parecem vincular esse quadro à nossa culpa primordial, de que se deseja uma espécie de purificação pelo fogo: “O mundo resignava-se invertido/ Nas forças principais do seu trabalho.../ A gravidade era um princípio falho,/ A análise espectral tinha mentido!// O Estado, a Associação, os Municípios/ Eram mortos. De todo aquele mundo/ Restava um mecanismo moribundo/ E uma teleologia sem princípios.// Eu queria correr, ir para o inferno,/ Para que, da psiquê no oculto jogo,/ Morressem sufocadas pelo fogo/ Todas as impressões do mundo externo!// Mas a Terra negava-me o equilíbrio.../ Na Natureza, uma mulher de luto/ Cantava, espiando as árvores sem fruto,/ A canção prostituta do ludíbrio!”.
No final de “Os doentes” também se percebe, num primeiro momento, o mesmo clima de destruição. A ruína, o cansaço, a doença generalizada relacionam-se estreitamente com a culpa, segundo se depreende da referência a um céu “vingador”; se há vingança, é que houve ofensa, agravo, falta: “Um céu calamitoso de vingança/ Desagregava, déspota e sem normas,/ O adesionismo biôntico das formas/ Multiplicadas pela lei da herança!// A ruína vinha horrenda e deletéria/ Do subsolo infeliz, vinha de dentro/ Da matéria em fusão que ainda há no centro,/ Para alcançar depois a periféria!// Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!/ Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos/ Tinham aspectos de edifícios mortos/ Decompondo-se desde os alicerces!// A doença era geral, tudo a extenuar-se/ Estava. O Espaço abstrato que não morre/ Cansara... O ar, que em colônias fluidas, corre,/ Parecia também desagregar-se!” (p. 111).
Segundo Omar Calabrese, comentando a estética neobarroca, “... qualquer ação ou indivíduo excessivo quer pôr em causa uma ordem qualquer, talvez destruí-la, ou construir outra nova.” . Augusto dos Anjos é um bom exemplo desse princípio geral e daí se firma como um remanescente barroco. Em seus torneios excessivos, alegóricos, através dos quais “deforma” a linguagem, ele rejeita a nossa transgressão primeira, o pecado original, e fantasia o emergir de um homem novo. Uma das passagens que melhor ilustram atitude é sem dúvida o final de “Os Doentes”, onde às imagens de destruição sucedem-se estes versos, de renovação e esperança: “O letargo larvário da cidade/ Crescia. Igual a um parto, numa furna,/ Vinha da original treva noturna,/ O vagido de uma outra Humanidade!// E eu, com os pés atolados no Nirvana,/ Acompanhava, com um prazer secreto,/ A gestação daquele grande feto,/ Que vinha substituir a Espécie Humana!” (112).
João Adolfo Hansen distingue dois tipos de alegoria – uma que ele chama de construtiva, ou retórica, e outra interpretativa ou hermenêutica . Enquanto a primeira constitui uma “técnica metafórica de representar e personificar abstrações”, a segunda, também chamada de “alegoria dos teólogos”, é antes um modo de interpretar os textos sagrados. Como tal, liga-se à hermenêutica sagrada; antes de ser expediente transfigurador do discurso, ela existe para sancionar um sentido prévio, absoluto, que em última instância a explica.
Das duas acepções do termo alegoria, interessa-nos obviamente a primeira. Ou seja, a alegoria como expediente retórico, caracterizado pela transposição contínua do sentido próprio no figurado. Dentro dessa conceituação genérica, centraremos nosso interesse num tipo especial de alegoria – o que foi praticado pelo barroco. Pois a ele, conforme demonstraremos, vincula-se grande parte dos procedimentos retórico-poéticos presentes em Eu e outras poesias.
Enquanto manifestação barroca, a alegoria se opõe ao símbolo e reflete a crise do sujeito após o período renascentista. Durante a Renascença prevaleceram, como se sabe, os ideais clássicos consubstanciados no humanismo greco-latino, do qual o símbolo era a típica representação. Suas características eram a clareza, a brevidade, a graça e a beleza. O símbolo era breve e claro porque representava “a idéia em sua forma sensível, corpórea” ; se o corpo podia traduzir o espírito, era porque a natureza, e com ela o homem, não se percebia culpada. O “símbolo plástico”, do qual o melhor exemplo é a escultura grega, traduz o acordo entre essência e natureza, alma e corpo; segundo Creuzer, citado por Walter Benjamin, ele reflete o momento em que “a essência não aspira ao excessivo, mas, obediente à natureza, adapta-se à sua forma, penetrando-a e animando-a” .
Esse acordo se quebra por força do pecado original. Devido a ele, o homem arrasta a natureza em sua queda, instaurando-se então a inconciliável dualidade corpo x alma. Correspondendo ao domínio do natural e do decaído, o corpo humano não pode mais representar um ideal de harmonia e beleza. E a essência, que antes nele se continha, perdendo o seu correspondente sensível, vai aspirar ao desmedido, ao excessivo. Nessa estética do desmedido e do excessivo, que caracteriza a alegoria, consiste a arte barroca. O excesso decorre do sentimento de desacordo, de diferença, cuja matriz foi a nossa primeira transgressão. Conforme nos lembra Rouanet, “...O saber do alegorista é um saber culpado. Ele quer salvar a criatura, embora saiba que ela é culpada, por causa do pecado original.” .
O excesso é, de fato, um elemento característico da estética barroca. Percebido como “ultrapassagem de um limite” , ele traduz a quebra da harmonia e do rigor que caracterizam o contorno, isto é, a medida pela qual se define a representação oposta, ou clássica. O barroco ou neobarroco, conforme nos ensina Omar Calabrese, é uma época da cultura “ ... em que (...) o prazer ou a necessidade é (...) tender para o limite e provar o excesso” , com vistas à contestação de um valor ou grupo de valores.
Culpa, excesso, desejo de construir uma nova ordem são marcas da poesia de Augusto dos Anjos, conforme procuramos demonstrar em nossa Tese, hoje livro, O evangelho da podridão . Nosso propósito agora não é investigar a melancolia do poeta, como então fizemos, mas apontar algumas imagens que, constituindo-se em representações alegóricas, vinculam-no à estética barroca.
Augusto um barroco? Um barroco fora de época? Ora, antes de ser um momento histórico datado, o barroco é uma ocorrência que se repete ao longo do tempo. Sarduy o define como “uma atitude generalizada e uma qualidade formal dos elementos que o exprimem” e reconhece, nessa perspectiva, que “...pode haver barroco em qualquer época da civilização” .
Conforme nos demonstra Walter Benjamin, melancolia e barroco se correspondem. O olhar barroco é também, como o olhar melancólico, dilacerado pela culpa. O melancólico, segundo nos instrui Freud, recrimina-se pela perda do objeto – e o barroco, pela visão e o reconhecimento de tudo o que, na história, é “prematuro, sofrido e malogrado”. No plano da representação barroca ou alegórica, marcado pela melancolia, a história se confunde com a natureza e aparece como “figuração de ruínas”; conforme observa Sérgio Paulo Roaunet, “...para construir a alegoria, o mundo tem de ser esquartejado. As ruínas e fragmentos servem para criar a alegoria” .
A representação alegórica, pois, constitui uma estética de fragmentação e de ruptura. O alegórico não persegue o harmônico, o sublime, o proporcionado; ele se volta para as coisas, para os objetos, que visa resgatar. E os resgata, justamente, constituindo-os em alegorias. É pela transfiguração alegórica que os objetos, por assim dizer, se salvam. Enquanto fragmentos, eles indiciam uma totalidade perdida, da qual o artista é nostálgico e que só se reconstitui no plano da beleza, ou seja, por intermédio da sublimação – já que, pela sublimação, o objeto adquire uma espécie de transcendência, scende a uma forma de absoluto. No caso de Augusto dos Anjos, a nostalgia da totalidade, ou mais propriamente da Unidade perdida, reveste-se de uma obsessão mística e se torna patente, por exemplo, na angústia com que ele procura “esse danado Numero Um/ que matou Cristo e que matou Tibério”.
Tentemos sumariamente apontar alguns exemplos de alegoria no poeta paraibano. Dentre as imagens por que ela se manifesta, destaquemos as que enfatizam a obsessão pela morte, a fratura do significante e, para usar uma expressão de Julia Kristeva, a “desconstituição da matéria” , já que o melancólico tende a projetar na natureza, nas coisas, a dissolução dos seus elos psíquicos.
A obsessão pela morte é um traço característico do alegorista. Segundo Walter Benjamin, “... a alegorização da physis só pode consumar-se em todo o seu vigor no cadáver.” . E Rouanet observa que “... a morte é o conteúdo mais geral da alegoria barroca; (...) o esquema básico do alegorista é transformar o vivo no morto.” . É próprio dele ver nos objetos as ruínas, e nas pessoas, a imagem do “cadáver potencial” que todos somos. E somos cadáveres potenciais porque a morte já está inscrita em nossas vidas, comprometendo-as desde o início. O olhar melancólico jamais se alheia dessa lúgubre evidência.
Augusto dos Anjos refere a obsessão com a morte em vários de seus textos, nos quais são visíveis tanto a recusa ao erotismo quanto a fixação no cadáver em que iremos nos transformar. Em “Apóstrofe à carne”, por exemplo, o eu lírico diz que, “ao (pegar) nas carnes do (seu) rosto/ (Sente) o fim da orgânica batalha:/– Olhos que o húmus necrófago estraçalha,/ Diafragmas, decompondo-se ao sol posto...” . Em “Mistérios de um fósforo”, escreve que “... (vê), como nunca outro homem viu,/ Na anfigonia que me produziu/ Noniliões de moléculas de esterco.” (p.176) . E adiante, no mesmo poema, remata: “... eu vejo enfim, com a alma vencida,/ Na abjeção embriológica da vida/ O futuro de cinza que me aguarda!”.
Um dos exemplos típicos de alegoria barroca está nestes versos de Cristoph Männling, que vê o mundo como “uma grande loja/ Um posto aduaneiro da morte/ Em que o homem é a mercadoria que circula/ A morte, a extraordinária negociante,/ Deus, o contador consciencioso,/ E a sepultura, um armarinho e armazém credenciado.” . Sem nunca ter possivelmente lido o poeta alemão, Augusto dos Anjos quase repete um dos termos dessa imagem, ao afirmar que “a morte .../ é a alfândega, onde toda a vida orgânica/ Há de pagar um dia o último imposto!” (p. 100). “Posto aduaneiro” em um, “alfândega” em outro – efeito de sombrias afinidades eletivas. Em ambos, a mesma idéia de que o imposto da vida é a morte, e de que esse ninguém vai conseguir sonegar. Melhor aceitá-lo, afeiçoar-se a ele, conforme o eu lírico de “Último credo”, que diz amar o coveiro, “ – este ladrão comum/ que leva a gente para o cemitério.” (p. 90).
Se o homem evolui para a morte, o corpo marcha para se transformar em esqueleto – em caveira. Daí outro traço característico do olhar alegórico, que é transpor a superfície corporal e se concentrar nas vísceras ou, sobretudo, nos ossos. Estes constituem o espólio a que a morte nos reduz. O esqueleto é concreção, limite, estágio último da “ultrafatalidade de ossatura” a que estamos submetidos; a personagem do soneto “Decadência” constata que, após haver perdido tudo, “... Só lhe restam agora o último dente/ E a armação funerária das clavículas!” (119). Esse tipo de representação envolve também o corpo feminino, cuja sensualidade exacerba a culpa do melancólico; Gustave Flaubert chega a confessar: “...A contemplação de uma mulher nua me faz sonhar com o seu esqueleto.” (14). E o próprio Augusto descarna o corpo da meretriz, radiografando-lhe o ato sexual na irônica e grotesca imagem que se segue: “Nesse espolinhamento repugnante/ O esqueleto irritado da bacante/ Estrala... Lembra o ruído harto azorrague/ A vergastar ásperos dorsos grossos./ E é aterradora essa alegria de ossos/ Pedindo ao sensualismo que os esmague!”. (p. 192).
Outro dos recursos usados por Augusto dos Anjos é a fragmentação do significante. Através dela, ressalta-se “... o princípio dissociativo e pulverizador, que está na base da concepção alegórica” . Julia Kristeva observa que o estrato fônico é particularmente adequado a traduzir as rupturas que, como inscrições intrapsíquicas, refletem o trabalho da pulsão de morte. O alegórico fratura o corpo da palavra, transferindo à corporeidade lingüística os estilhaçamentos de que, na sua ótica, é feito o corpo do mundo. Com o barroco, através da alegoria, a linguagem é levada antes a significar do que a comunicar. E a significação se consegue, basicamente, com a “antítese” entre som e sentido; com o excesso de forma interferindo, saturando o que se quer dizer. A poética de Augusto dos Anjos, conforme defendemos em nossa Tese, está marcada por um excesso de representação fonossemântica.
Através sobretudo das aliterações e das sinéreses, Augusto tensiona ao máximo a articulação fônica. Observe-se, no exemplo seguinte, como os grupos consonantais em /r/ parecem reproduzir o movimento dos ossos que dançam: “Os esqueletos desarticulados,/ Livres do acre fedor das carnes mortas/ Rodopiavam com as brancas tíbias tortas/ Numa dança de números quebrados!” (p. 72). Neste outro, onde ele acusa a chegada do “Filósofo Moderno”, a angustiante monotonia infernal nos é sugerida, ou reforçada, pelo excesso de fonemas /e/: “Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,/ Trazendo no deserto das idéias/ O desespero endêmico do inferno...” (p. 52). No exemplo seguinte, ainda, o afã lúbrico e pecaminoso do sátiro parece intensificar-se através da consoante gutural; a sua sensualidade “...Lembra a fome incoercível que escancara/ A mucosa carnívora dos lobos.” (p. 54).
Tratemos, para finalizar, das imagens de desconstituição da matéria. Em Augusto dos Anjos, elas em grande parte se inserem no domínio da doença, que parece acometer a matéria orgânica e inorgânica. Lacan nos lembra que o gosto pelo mórbido é característico do universo da falta; no contexto de Eu e outras poesias, as imagens que projetam a fragmentação no mundo natural, exterior, não são senão reflexos de um desmoronamento interior, o qual reflete a tirania do superego. O que primordialmente se desconstitui é a unidade psíquica do eu lírico, cujo estilhaçamento se reflete no corpo (como doença) e no mundo – no corpo do mundo, também este doente.
É no bojo de tais cortes que, ao símbolo, sucede a alegoria – a figura por excelência da ruptura e da crise. Atentando nas articulações simbólicas do processo, Julia Kristeva relaciona a fragmentação com o abandono do “Absoluto do Sentido” . A melancolia barroca ou moderna, segundo outra estudiosa francesa, “...nasce nessa grande cesura histórica dos séculos dezesseis e dezessete, onde a língua perde as suas referências ontológicas...” . Reduzida a um “molambo”, “paralítica” (para referir outra imagem de nosso poeta, no soneto “A idéia”) a língua não mais diz o ser. Estamos, pois, diante de uma crise do homem em face do Ser Absoluto, com o qual os elos, necessariamente simbólicos, foram cortados. Daí se vê que o barroco não se opõe apenas à Antiguidade greco-latina; opõe-se também à própria visão de mundo medieval, onde esses liames de alguma forma eram mantidos.
As imagens de doença e destruição disseminam-se ao longo de toda obra de Augusto dos Anjos. Destaquemos dois significativos exemplos: no final de “As cismas do Destino”, a impressão geral é de paralisia e desalento. Observe-se a referência ao “mecanismo moribundo” a que se reduz um mundo sem “teleolologia” ou transcendência. Observe-se também como as referências à “Natureza”, ao “ludíbrio” e ao “luto” parecem vincular esse quadro à nossa culpa primordial, de que se deseja uma espécie de purificação pelo fogo: “O mundo resignava-se invertido/ Nas forças principais do seu trabalho.../ A gravidade era um princípio falho,/ A análise espectral tinha mentido!// O Estado, a Associação, os Municípios/ Eram mortos. De todo aquele mundo/ Restava um mecanismo moribundo/ E uma teleologia sem princípios.// Eu queria correr, ir para o inferno,/ Para que, da psiquê no oculto jogo,/ Morressem sufocadas pelo fogo/ Todas as impressões do mundo externo!// Mas a Terra negava-me o equilíbrio.../ Na Natureza, uma mulher de luto/ Cantava, espiando as árvores sem fruto,/ A canção prostituta do ludíbrio!”.
No final de “Os doentes” também se percebe, num primeiro momento, o mesmo clima de destruição. A ruína, o cansaço, a doença generalizada relacionam-se estreitamente com a culpa, segundo se depreende da referência a um céu “vingador”; se há vingança, é que houve ofensa, agravo, falta: “Um céu calamitoso de vingança/ Desagregava, déspota e sem normas,/ O adesionismo biôntico das formas/ Multiplicadas pela lei da herança!// A ruína vinha horrenda e deletéria/ Do subsolo infeliz, vinha de dentro/ Da matéria em fusão que ainda há no centro,/ Para alcançar depois a periféria!// Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!/ Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos/ Tinham aspectos de edifícios mortos/ Decompondo-se desde os alicerces!// A doença era geral, tudo a extenuar-se/ Estava. O Espaço abstrato que não morre/ Cansara... O ar, que em colônias fluidas, corre,/ Parecia também desagregar-se!” (p. 111).
Segundo Omar Calabrese, comentando a estética neobarroca, “... qualquer ação ou indivíduo excessivo quer pôr em causa uma ordem qualquer, talvez destruí-la, ou construir outra nova.” . Augusto dos Anjos é um bom exemplo desse princípio geral e daí se firma como um remanescente barroco. Em seus torneios excessivos, alegóricos, através dos quais “deforma” a linguagem, ele rejeita a nossa transgressão primeira, o pecado original, e fantasia o emergir de um homem novo. Uma das passagens que melhor ilustram atitude é sem dúvida o final de “Os Doentes”, onde às imagens de destruição sucedem-se estes versos, de renovação e esperança: “O letargo larvário da cidade/ Crescia. Igual a um parto, numa furna,/ Vinha da original treva noturna,/ O vagido de uma outra Humanidade!// E eu, com os pés atolados no Nirvana,/ Acompanhava, com um prazer secreto,/ A gestação daquele grande feto,/ Que vinha substituir a Espécie Humana!” (112).
Bibliografia
ANJOS, Augusto dos. Eu, outras poesias e poemas esquecidos. Texto e nota
de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: São José, 1971.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresenta-
ção e notas por Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1987. (Arte
& Comunicação).
HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora.
São Paulo: Atual, 1986. (Série Documentos).
MAGAZINE LITTÉRAIRE; Littérature e mélancolie (dossier). N. 244,
juillet-août 1987.
VIANA, Chico. O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto
dos Anjos. João Pessoa: UFPB/Editora Universitária, 1994.
do site : www.chicoviana.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário