quarta-feira, 20 de junho de 2012

Poesia paraibana no século XXI: o que vem por ai?



Por Linaldo Guedes

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

    Quando os “Versos Íntimos” de Augusto dos Anjos eclodiram na cena literária brasileira, há exatos cem anos, a Paraíba começou a se tornar conhecida, também, como terra de poetas. Verdade que não foi fácil a absorção da poesia de Augusto dos Anjos por parte da crítica. O poeta paraibano, natural do município de Sapé, só teve sua poesia reconhecida pela crítica após a sua morte, e isso, como lembra o cronista Gonzaga Rodrigues, porque seus versos se tornaram populares perante o público. Ou seja: Augusto primeiro foi reconhecido pelo público para só depois ser aclamado pela crítica.
 

    À propósito dessa tese de Gonzaga Rodrigues, lembro de um episódio ocorrido em meados dos anos 90. Na época, eu integrava um grupo de poesias, intitulado Poecodebar, que se apresentava em bares e circuitos alternativos de João Pessoa. Encenávamos nossos próprios poemas. Numa das nossas apresentações, fomos vaiados constantemente por um senhor que aparentava estar bêbado. Depois de muita perturbação, resolvi provocá-lo e disse ao público que ele era integrante do nosso grupo e que tudo aquilo era combinado. O senhor não se fez de rogado. Subiu à mesa onde nos apresentávamos e recitou justamente “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos. Na verdade, ele queria ouvir os versos de nosso poeta maior e não os daqueles meninos imberbes metidos à poeta.
 

    O episódio acima apenas ilustra a popularidade de um poeta de linguagem difícil, que construiu uma trilha tão única na poesia brasileira que até hoje não teve seguidores à altura. Augusto dos Anjos foi tão singular que demorou muito tempo após a sua morte para aparecerem autores que poderiam ser chamados de poetas na cena literária paraibana.
 

    O Modernismo, por exemplo, demorou a aportar por aqui. Enquanto em São Paulo e no resto de Brasil se inflamavam as discussões em torno das novas estéticas e propostas literárias lideradas por Oswald de Andrade e outros, na Paraíba as coisas caminhavam a passos de tartaruga. Publicações como A União e Nova Era até divulgavam os ecos modernistas, mas sempre com menções conservadoras, como atesta Hildeberto Barbosa Filho em seu “Arrecifes e Lajedos”, livro fundamental para quem quer conhecer a história da nossa poesia. Hildeberto cita, inclusive, que José Américo de Almeida e Peryllo DOliveira são nomes que foram simpáticos à poesia moderna na Paraíba dos anos 20. “Simpatia, no entanto, moderada, tanto pela formação de cada um quanto pelo contexto, decerto pouco favorável às mudanças”, avalia Hildeberto.
 

    Talvez a influência de Augusto dos Anjos tenha sido um pouco nociva para a poesia paraibana. A herança do soneto bem ao estilo parnasiano durou muitos anos, quase sempre com resultados longe do brilhantismo de um Augusto dos Anjos. A imitação do estilo do poeta do EU também foi uma praxe, que adentrou décadas e séculos de forma ridícula. Pior de tudo: o sucesso da poesia de Augusto dos Anjos fez com que todo mundo achasse que era poeta nesta terra. Isso fez (e faz até hoje) surgirem “poetas” de qualidade duvidosa ou pseudos poetas.
 

    Mas não foi apenas a poesia modernista que não vingou em seu tempo na Paraíba. Outras tendências e autores demoraram a ecoar em terras tabajaras. Como João Cabral de Melo Neto, que só veio explodir com força na poesia de Sérgio de Castro Pinto e do Grupo Sanhauá, já nos anos 60. O Sanhauá, aliás, foi o grande sopro de modernidade na poesia paraibana. Tardiamente, é verdade. Mas, enfim, com o Sanhauá descobrimos que tínhamos poetas de qualidade e não meros epígonos. Além de Sérgio, Marcos Tavares foi outro poeta que se afirmou neste grupo. Antes, a Geração 59 deu uma identidade à poesia paraibana. Ainda influenciada pelas estéticas românticas e parnasianas, a poesia de Vanildo Brito e Jomar Morais Souto tinham, no entanto, tanta qualidade lírica que até hoje continuam sendo referências em nossa tradição poética.
 

    Após o Sanhauá, diversos grupos e poetas foram surgindo e desaparecendo, a maioria deles debutando sempre nas páginas do Correio das Artes. Para não me alongar demais neste introito, cito aqui nomes como Saulo Mendonça, Políbio Alves, José Antônio Assunção, Chico Lino, Edônio Alves, Amador Ribeiro Neto, Lau Siqueira, Astier Basílio, André Ricardo Aguiar e Antônio Mariano. São estes nomes citados, e muitos outros, que mantiveram nossa tradição lírica e vanguardista acesas. Mais do que isso, fizeram a ponte para o embarque das novas gerações no trem da poesia. Aliás, melhor seria falarmos em metrô, já que estamos no século XXI. Mas em nossa terra ainda não tem metrô e isso talvez reflita em nossa poesia, ainda carente de ousadias, ainda devotada, em muitos casos, à influências dos tempos de Augusto dos Anjos.
 

    Com ou sem ousadias, o certo é que nossa tradição lírica se renova e novos nomes já começam a aparecer. E o grupo Caixa Baixa tem contribuído decisivamente para essa renovação. Do final do ano passado para início deste 2012, o grupo tem ocupado espaços na literatura paraibana, participando de eventos, organizando outros e lançando livros. São autores dos mais diversos rincões do estado que, graças às facilidades do mundo virtual, interagem prosa e poesia. Nem tudo que é reluz é ouro, claro. Há deficiências na produção literária de alguns componentes do grupo e às vezes parece que a qualidade bate palmas para a quantidade. Mas alguns nomes já merecem referências e devem ser olhados de forma mais atenta.
 

    É o caso de Thiago Lia Fook, na minha avaliação o poeta mais resolvido literariamente falando do grupo. Nascido em Campina Grande, Thiago é graduado em Direito pela UEPB e tem Mestrado em Ciências Jurídicas pela UFPB. Publicou o livro “Poesia natimorta e versos sobreviventes”,  pela editora Bagagem em 2010 e contos e poemas em sites e revistas na internet.
 

    Thiago tem uma poesia onde o domínio do verso parece bem mais presente, em comparação com os demais colegas do grupo. Chega a render tributo a Mário Quintana e outros poetas, mas com dicção própria, sem procurar ser plágio de suas próprias influências. Habitante das margens do Igapé, Thiago estreou bem em livro e pode integrar tranquilamente o índice da nova literatura paraibana. Como faz ver no poema “Súmula”:

“explosões de gases
nos corpos do céu
e da terra...

.............luzeiros
.............que nascem

.............buracos
.............que mordem

.............a alma?

.............assumas
.............foram atingidas
.............pelas faíscas”

    Outro poeta do grupo Caixa Baixa que merece destaque é Bruno Gaudêncio, autor de dois livros é um poeta que investe um pouco mais na tradição lírica-erótica com bons resultados, como mostra no poema “Acaso Caos”, cheio de indagações, indagações essas que afirmam seus versos:

“o caos que existe em nós
não faz a cama,
mas abre as portas,
as pernas…

o acaso não liberta,
mas deixa a chama,
a chave,
na porta…
na pele.

acaso o caos
não é o cobertor?
a madeira que divide
os nossos corpos
na hora do sexo?”

    Também de Campina Grande, Bruno nasceu em 1985. Graduado em jornalismo e história, publicou “O Ofício de Engordar as Sombras” e Cântico Voraz do Precipício”, este último de contos. Bruno Gaudêncio é um dos idealizadores do Caixa Baixa, assim como Jairo Cézar.
 

Autor de “Escritos no ônibus”, vencedor de prêmio literário promovido pela Funjope, Jairo tem uma poesia que paga tributo às tradições orais dos cordelistas e cantadores de viola. Admirador confesso de Augusto dos Anjos, conseguiu não deixar que a poesia do autor do EU influenciasse em sua produção. Este ano, Jairo lançou “Rapunzel e outros poemas de infância” e surpreendeu a crítica com um livro muito bem construído. Curiosamente, sua poesia cresce mais na linguagem feita para o público infantil. Um exemplo é o resumo poético que Jairo consegue para a história de Pinóquio:

“O menino disse
Que a menina ouviu
Que de tanto dizer a verdade,
O nariz do Pinóquio sumiu!”

    Ou a dos três porquinhos:

“Palha, madeira ou tijolo?
Onde será que mora o lobo?”

    Concisão e talento acima da média para recriar poeticamente histórias de nosso imaginário infantil.
 

    Mas a poesia paraibana do século XXI não se resume ao Caixa Baixa. Há nomes e nomes que trilham caminhos individuais e tendências estéticas diferentes.
 

    É o caso de Eunice Boreal, artista multimídia que ultiliza diversos suportes para exercitar a poesia. Desenvolve projetos em teatro, curta metragem, música, performance, videoart, desenho, pintura, instalações e poemas. Conheci Eunice como atriz, mas depois descobri uma poeta antenada com as novas tendências tecnológicas, mas sem abrir mão do lirismo, a raiz de toda tradição poética. Com bacharelado em Filosofia, é natural que a poesia de Eunice tenha questionamentos filosóficos. Mas sua poesia também abusa, no bom sentido, da ironia, da concisão métrica e da contestação rebelde que deve alimentar cada geração. É o caso do poema “Eco depois de um mês em 68”, onde ela diz:

“Nós cansamos do velho
da intrépida múmia
com mofo aromático
E desespero tétrico.
Mas nunca do clássico
Pois esse não envelhece
Ganha a voz com o vento
E no tempo permanece.

Nós cansamos do que se basta
O que se rende à casta
Temem o que vem e se temem
Nunca se olham nem se desentendem
Nunca se afirmam e nem surpreendem.

Nós inventamos o futuro
E engolimos o modernismo
Nós devoramos a vanguarda
E transcendemos o partidarismo
mas isso,
é só
porque nascemos depois
que nasceu o pluralismo”.

    Por fim, incluo neste sumário da novíssima geração o poeta Daniel Sampaio. Também advogado, Daniel não lançou livro, mas tem poemas publicados em antologias lançadas no Brasil e em Portugal. De todos os autores aqui citados, é o que mais radicaliza o diálogo com as vanguardas, a exemplo do concretismo e da poesia inventiva que vingou no início deste século. Este diálogo, entretanto, é feito de forma consciente, com o cuidado e a valorização que a linguagem poética há de sempre exigir. Diálogo que também é feito com solos de rock’n’roll ou árias de óperas. Neste sentido, transcrevo aqui a série de perfis publicados por Daniel Sampaio na revista eletrônica Zunái:

1.
O cigarro entre os dedos faz cair
cinzas sobre o prato
alumínio e flexível do almoço do dia.
Mas a fome não dejeta
o desejo do vício.
Ao contrário, ela despeja
uma tensão nos intestinos
do faminto que agora come
com as mãos sujas
de um trago pra lugar nenhum.

2.
A intenção do tiro
lhe passar as têmporas
adoça o tempo que lhe resta.

Sabe ser a vida
o segundo de silêncio
antes da estopa da roupa
ensaguentar-se.

Como um Werther, o vinho
entornado sobre a mesa,
risca o dedo para sonar a vida

e o doce rumor do nada.

3.
Espera ao pé do lixo
a vez de ser chamado.
Segura a ficha entre os dedos
polegar e indicador
de traços magros, pele
ressecada e rugosa como
figo seco e estragado.

À frente há o espelho
das janelas contra o
rosto de horto e pétalas
em pedaços de calcário.
Mas está em desconforto,
e não percebe o reflexo
do ramalhete de corvos.

Sua vez, no entanto,
não será agora. Antes
dele, aquela Senhora”.

    Daniel Sampaio, Eunice Boreal, Jairo Cézar, Bruno Gaudêncio e Thiago Lia Fook são apenas algumas sugestões de nomes para serem lidos e questionados na nova poesia paraibana. Todos tem poesia (ainda em construção, é verdade) e estofo literário para crescer e fermentar novas linguagens e novos versos. São poetas com estilos diferentes, embora de uma mesma geração, o que é ótimo. E também são autores que provocam e colocam o dedo na ferida em questões chaves da literatura. Enfim, são os autores que vão escrever a nova poesia paraibana. Ou não! Vai depender deles, claro.

(Texto que proferi em mesa redonda do evento “Literando Culturas: do regional ao universal”, no I Encontro de Literatura da UVA, sábado, dia 9 de junho, no Teatro do Sesi, em João Pessoa)

do blog:  http://linaldoguedes.blog.uol.com.br/

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