A beleza não é a viga dos encantamentos, apenas. A beleza é o domínio dos abismos da mente e do corpo. Seja num artista, seja num espectador - por mais desatento que seja. A beleza é um espetáculo de cores e escuridão, de sons e silêncios, palavras e pausas. Segundo Hopkins, a beleza é difícil e segundo W. J. Solha é brutal. Não importam aqui os conceitos surrados ou novos. A verdade é que nas poucas palavras deste artigo não será possível definirmos o que foi a belíssima obra construída por diversas mãos, corações e mentes numa dedicação consagradora aos 70 anos de um dos mais completos dentre os grandes artistas brasileiros, W. J. Solha.
Não sei que registro foi feito das duas apresentações de “Cantata Bruta”, uma realização da FUNJOPE e da FUNESC em homenagem ao escritor, sonhador, artista plástico, cidadão íntegro, escritor, ator e outras faces da mesma face no multi-artista homenageado. Na verdade foi uma homenagem às artes porque Solha também participou enquanto criador. Creio que a Paraíba viveu nos dias 29 e 30 de outubro, no palco do Cine Bangüê do Espaço cultural José Lins do Rego, um dos grandes momentos da nossa cultura nas últimas décadas. Ousadia estética e exatidão matemágica foi o que transcendeu como um relâmpago na execução da Cantata Bruta pela Orquestra de Câmara cidade de João Pessoa, sob a regência do maestro Eli-Eri Moura.
Uma das afirmações do concerto, foi a produção erudita da Paraíba. Provavelmente um dos grandes pólos de produção de música erudita contemporânea do Brasil. No palco, além da Orquestra de Câmara, o coro Sonantis, a mezzo-soprano Maria Juliana Linhares, o tenor Ed evangelista e os declamadores Walmar Pessoa e Suzy Lopes. Marcílio Onofre e Valério Fiel cuidaram das sutilezas com intervenções eletrônicas realizadas ao vivo.Tudo muito bem guardado numa iluminação cênica e num cenário que foi um espetáculo à parte. Obra de Jorge Bweres que assinou também a direção de palco. O texto era do próprio Solha (do livro História Universal da Angústia), com músicas de Didier Guigue, Eli-Eri Moura, J. Orlando alves, Marcílio Onofre, Valério Fiel e Wilson Guerreiro que em apenas sessenta dias concluíram as composições.
Certamente que nas duas noites de apresentação da Cantata Bruta, ninguém saiu impune do Espaço Cultural. Impossível que alguém não tenha ficado impactado com a ousadia, a experimentação e a erudição caminhando juntas na elaboração das peças que nos proporcionaram a possibilidade de testemunhar o quanto a diversidade pode convergir quando a direção sabe o caminho e onde cada milésimo de segundo caberá entre o som e a palavra, entre o acorde e o silêncio. Uma obra de mestres das artes não poderia ser diferentes.
Não sei se algum artista brasileiro ou mesmo do mundo, já recebeu uma homenagem que dialogasse de forma tão intensa com sua obra. No caso de Solha, uma obra que não se contém nas cores e nas palavras, mas vai em busca do encantamento e da brutalidade enquanto elemento do real e do imaginário que compõe a alma humana. Quem pode assistir esse concerto-espetáculo sabe que, guardadas as proporções, viveu um momento que do ponto de vista estético podemos considerar um marco no pensamento estético paraibano, tal como diversos movimentos de vanguarda das artes que produziram manifestos e influenciaram gerações futuras.
Estava tudo lá no palco do Bangüê. Artes plásticas, literatura, teatro, música, invenção estética, futurismo, tradição, ousadia... A brutalidade da Canga e de obras monumentais como História Universal da Angústia (de onde foram arrancados os textos sangrados), com a roupagem épica de um Trigal com Corvos, escritos magistrais de W. J. Solha que, assim, conduz para o infinito a consagração de sua imensa e diversificada obra. A beleza verticalmente experimental repercutiu na vivência estética da platéia e lembrou-me, quando descia as rampas do Cine Bangüê o Manifesto Surrealista escrito em 1924: “(...) cara imaginação, o que eu amo, sobretudo em você, é que você não perdoa.”
Tudo neste concerto foi afirmação positiva. Um diálogo espantoso com o nosso tempo, com as esquinas conturbadas do Século XXI, seja nas vitrines rompidas pelo vandalismo dos jovens londrinos, seja pelas almas atoladas no mangue de Bayeux ou nos impactos das balas que assassinam centenas de jovens anualmente em áreas de vitimadas pelo apartheid paraibano, como o bairro São José ou Ilha do Bispo. Uma intervenção com visão de futuro foi o que pude perceber pelos corredores, nas movimentações da saída. Uma noite que não poderia ter sido mais intensamente vivida diante de uma beleza brutal.
Não sei se os executores do projeto pretendem retomá-lo em algum momento. Não sei que tipo de registro foi pensado para algo tão grandioso, além das partituras. No entanto, testemunhei com todos os meus poros e com a minha infinidade de sentidos algo que jamais será arrancado da minha memória e certamente estará gritando aos meus tímpanos que uma nova forma de fluir esteticamente foi sendo conduzida coletivamente, arrastando como em um tsuname, uma velha literatura, uma velha erudição, uma velha concepção de espetáculo e concerto, uma velha sistemática de regência e de direção e cenário. Parece que tudo mudou e, logicamente que me refiro aqui apenas a uma vivência pessoal que não coube em uma platéia lotada. Penso que a partir da Cantata Bruta estamos tansbordando para uma nova forma de pensar a arte do nosso tempo.
Tudo de melhor dos nossos dias estava concentrado em uma redoma em chamas que não poderia ter outro título, pela dose de pancadas de uma transgressão estética que há décadas, tenho certeza, não se via com tamanha intensidade, na insanidade de uma lucidez coletiva, de uma sangria de olhares que se encantavam e se espantavam, se espetavam diante do que pode a arte num estado de brutal beleza. Nenhuma homenagem, no entanto, poderia ser menos grandiosa para um arista da dimensão de um W. J. Solha. Tivemos a oportunidade de testemunhar a história guardada num sopro, num ciclone, numa tempestade de delicadezas e na carne sem pele dos nossos sentidos.
do blog: http://lau-siqueira.blogspot.com/
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