Betomenezes
Não tem uma vez que não aconteça. Toda
vez que acordo e abro os olhos, o primeiro pensamento que me vem é: cadê
meus óculos? Sou míope. O que eu enxergo além do meu braço, quando
estou sem óculos, é uma borra de cores. Parece que as cores rompem os
contornos das formas e se misturam em uma pintura tridimensional sem
foco. E se olho para mais longe, a confusão quer se ampliar em uma
dimensão e assim sem óculos não me atrevo a sair de casa. Sou quase cego
sem essas lentes.
Hoje quando acordei, procurei os óculos e
eles não estavam lá onde sempre ponho. Geralmente alguém me socorre;
alguém que enxergue além de dois palmos. Mas hoje eu estava só. Se não
existissem óculos, é certo que há muito eu estaria acostumado com a
situação, assim como os cegos. Porém me apavoro só com a idéia de
continuar assim, quero os meus óculos. Geralmente fecho os olhos e
espero, vou dormir mais um pouco. Nos sonhos não uso óculos, enxergo o
que quero, como quero. Hoje não foi dia para esticar a soneca. Não
esperei pelo bom samaritano que não iria chegar. Tive que levantar e ir
palpando as paredes, até chegar nas reentrâncias e saliências do mar de
objetos sobre a mesa desarrumada; com os olhos bem perto, para trazer à
luz duas lentes transparentes, presas a duas hastes metálicas invisíveis
no meio de tanta bagunça.
Imagine um mundo em que todos tivessem um
tipo diferente de miopia, uma miopia extrema. Explico: depois de certa
distância (digamos, um metro) não se enxergasse nada e para esse mal não
existissem óculos. A visão estaria encarcerada em uma esfera de um
metro de raio. Nossos olhos seriam o centro desta esfera; um abajur que
iluminaria só dentro dela. Fora, a incerteza. Todos nesse mundo teriam
uma lanterna destas e mais nada. Se houvesse alguém sem esse problema,
veria os quase-cegos vagando pelas ruas, caminhando de lá pra cá, de cá
pra lá. Teriam que para ver para crer.
E se além de quase-cegos, todos fossem
quase-surdos, da mesma maneira. Não se poderia indagar, “tem alguém
aí?”. Cada um seria uma barco à deriva, que, quando em quando, por
coincidência poderia se chocar com outra navegação. E nesse encontro,
quando as esferas da iluminação se coincidissem, não haveria mais
cegueira, não haveria mais surdez; mas apenas nesse encontro de metros,
na superposição das duas esferas. Para continuar assim, perpetuar este
instante, os que se esbarrassem não poderiam mais se separar, ou
correriam o risco de nunca mais se acharem; como dois barcos no meio do
Oceano depois que transpõem a linha do horizonte.
O horizonte. É, finalmente achei o meu
par de óculos. Escorregadio se meteu por baixo de folhas amassadas de
jornal. Pus no meu rosto e, tranqüilo, fui passear na orla. Na praia
vazia, sentei na areia, a fim de ouvir o som do quebrar das ondas, no
entanto me distraí com uma linha que se estendia horizontal. Roubava as
minhas vistas: a linha do horizonte.
A palavra horizonte vem do grego orizon
que, como é de se esperar, significa limitar. Durante milênios, o terror
de qualquer cidadela desprovida de uma boa defesa era a possibilidade
de surgir na linha de horizonte algum batedor de uma tropa inimiga de
tamanho e força incógnitos. Paliativos eram tomados, como pôr torres de
vigia para ampliar o raio de visão, que mesmo assim eram limitados. E
muitas batalhas foram decididas desta maneira, com a surpresa, pela
terra ou pelo mar, do inimigo que vinha por trás da linha do horizonte.
Se sobre ombros se vê mais longe, imagina
sobre ombros de gigantes. Respostas não levam ao silêncio, levam a mais
perguntas. E perguntas e mais perguntas vieram à tona. Muitos baús
foram remexidos atrás de óculos para elas. Viu Darwin a origem das
espécies. Viram Rutherford e Bohr a eletrosfera quântica. Viu Einstein a
relatividade do movimento. Viram Flemming e Mendell o gen. Viu Hubble o
Big-Bang. Viram Crick e Watson o DNA.
Para não se prolongar numa lista extensa
de iluminações, basta dizer que a ciência e todas as revoluções que se
sucederam por esses séculos alargaram o horizonte para uma distância
confortável. Porém, ainda restam infinitos horizontes que não
conseguimos romper. Einstein disse: “Só há duas coisas infinitas: o
Universo e a estupidez humana e quanto à primeira não tenho a certeza”.
Sobre o Universo ainda não se tem certeza, porque o que podemos ver dele
é só a distância que a luz percorreu desde a sua criação, nunca se
saberá além disso. Já sobre a estupidez humana, sou mais otimista do que
Einstein, mas devo dizer que há muito estúpidos que por conveniência
querem permanecer sem enxergar um palmo à frente, mesmo existindo óculos
para eles.
Depois de um dia inteiro, eu ainda estava
na praia. A cinco quilômetros na minha frente a linha do horizonte que
escurecia. Cansado de olhar para ela, desejei ir até lá, nadar para
muito mais do que cinco quilômetros, para além de miríade de linhas.
Beber do leite de nossa galáxia, desmanchar a beleza das nebulosas e
pendurar minha rede na orla do horizonte do Universo, e ali descansar
para outras jornadas. A certa altura, esqueceria que precisava de óculos
para ver, mas eles estariam lá.
Miopia tem cura. Basta apenas encontrar as lentes certas, quase sempre elas existem.
Publicado em maio de 2010 no Jornal O Contraponto
Me identifiquei por completo. Míope com quase cinco graus. Os óculos são a minha janela para o mundo... Gostei!
ResponderExcluirtambém sou míope. os óculos são nossa janela mesmo.
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