domingo, 19 de junho de 2011

Texto de Amanda Paiva e Natália Meira

O varal


Tenho a sensação de pesar mais a cada dia, cara senhora. Um peso nada confortável, porque o velho sol de sempre acaba torrando minha paciência. Eu deveria gostar do sol, porque ele faz a roupa secar, mas logo virá outra roupa e outra e outra. Não sei se suporto mais muito tempo. Noto, dando um sorriso triste, que as emendas de barbante no decorrer do meu fio já quase arrebentam. Queria mesmo é ser fio de eletricidade, cheia de amigos e energia, de mãos dadas com os belos e imponentes postes, ver todo o fuzuê dos amantes que brigam rua a baixo e logo depois se beijam na parede, ver a beleza dos automóveis a buzinar. Tenho fascínio por amores e automóveis, adoro-os igualmente pela beleza. Minha amiga, daqui de dentro só sei os que as senhoritas roupas nos contam. Ser varal é lastimoso


Certamente, minha senhora, você já suportou muito peso na vida. Comigo sempre foi assim, desde que me tiraram de um saco plástico e me prenderam no fundo deste quintal, eu soube quem eu era: um simples varal de 1,99. Já aguentei o peso de cobertores gigantes no inverno, ventanias e tempestades no verão – é tão triste quando se esquecem de recolher as roupas e de repente chove, ou quando chove e não tem ninguém em casa. Saiba de uma coisa, minha senhora, roupa só gosta de água com sabão perfumado – e tantas fantasias de outros carnavais eu já pendurei, firme e forte. Ah, foram tantos lençóis, meias, camisetas... Eu gosto mesmo é de calcinha. Finas, rosas, delicadas, brancas, de bolinhas, de todos os tamanhos, formatos e cores, até as incompreendidas beges eu amo. São tão gentis, conversam o tempo todo, fofocam sem parar, dizem coisas obscenas, me divirto com os gritinhos quando falam mal uma das outras, mas só tagaleram essas coisas às vezes. Calcinhas são maravilhosas. São loucas. Apaixonantes. Sempre um "bafo polêmico" para contar. Ritinha, aquela que tem rendas e lacinhos de cetim, então, minha senhora, aquela moçoila é uma loucura. Mas como sofre a danada, ontem mesmo estava toda desestruturada, pois ficou o a noite inteira no chão de um quarto, quase embaixo da cama, ao lado de cuecas sujas do então dono do quarto. Ah, odeio cuecas, cada cara chato. Só falam asneiras. Ninguém merece. Quando ficam presas ao lado das calcinhas, deus do céu, que fuzuê, não param de perturbar minhas colegas. Felizmente só tenho que suportar o peso de coisa limpa. Mas a coisa tá ficando suja, já não sei se suporto, minha aposentadoria vem logo.


Estou ficando velho mesmo, já nem noto a alegria ou antipatia das roupas, pra mim todas são como aquele jeans pesado, ou como a besta da Maria Hedredon das Flores. Mas recordo-me agora, com essa prosa sobre calcinhas, de um dia que Elizabeth, uma calcinha novinha que queria ser calcinha madura, saiu sendo levada pelo vento. Sempre soube que isso aconteceria, ela era minúscula, parecida com Ritinha, danada que só ela, de tão pequena mal entendo de que maneira entrava coxa acima. E a profecia se cumpriu, voou no primeiro ventinho de primavera. Depois do susto, as Cuecas promiscuas, que estavam loucas pela tal Elizabeth rendada, apenas se lamentavam, e as calcinhas de algodão davam risinhos. Calcinhas são tão interessantes, antes me pegava gargalhando com seus contos românticos e eróticos. É, acho que estou ficando velho, já não suporto o peso e nada me distrai. Até mesmo as andurinhas perderam o sentido e o amor perdeu o sentido.





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Parceria com a também caleidoscópica Natália Meira.


Quando eu disse que nunca mais escreveria ela me fez escrever


automaticamente. E como a menina talentosa disse, isso não se controla.


Me diverti muito.

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