Por Aíla Sampaio*
Lau Siqueira é um poeta sem fronteiras. Seu projeto estético é a poesia em todas as formas, por isso revisita fórmulas de vanguarda e cria as suas, no movimento ascendente e inventivo dos que não se quedam quietos diante de uma folha (ops... tela) em branco. Sem pontuação e com o uso arbitrário de letras iniciais maiúsculas, ele fala, murmura, grita, em silêncio, como um monge que desce da torre de marfim para arrancar a olho nu a pele das palavras. Desnuda-as para retirar-lhes os panos desnecessários e vesti-las em sedas comedidas, mas surpreendentes.
Sua poesia não é intuitiva, é artesanato, tecelagem. Isso não a isenta de sensibilidade, ao contrário, revela o envolvimento de um processo cerebral que alia a razão ao pensamento, à sua forma de sentir o mundo. A reflexão metapoética diz da consciência do texto literário como um trabalho de linguagem: “no entalhe / a madeira se reparte // com porte de quem / cumpre o rito criador // o machado parte // a árvore tombada / já não é a mesma // virou linguagem / substrato e signo de / abismo e arte”. (“Tese de Machado”, em Poesia sem Pele, p. 17), o que se confirma em “poetria” (Poesia sem pele, p.21): “poema é face descoberta / de tudo que pulsa // poema é atitude permanente / em tudo que passa // (massa)”.
Lau é um manipulador de signos, gosta de experimentá-los, lavrá-los na superfície da folha. Daí suas incursões pelo não conceitual, pelo não verso, pela experiência com a palavra e sua disposição na página. Poeta semiótico, sem dúvida, herda a palavra-coisa dos concretistas, mas não cai no hermetismo deles. Como num laboratório, mistura palavras, decompõe sílabas, explora sonoridades e possibilidades expressivas. No poema “vvvvvvvvvveloz / a vida pássaro / por nósssssss” (Poesia sem pele, p.24), o efeito estilístico da aliteração do V avulta a motivação da palavra, dando-lhe movimento e velocidade; o acréscimo dos S de ‘nós’ parece querer alongar o plural e criar, no pronome, a ideia de multidão; ‘pássaro’ em vez de ‘passa’ (verbo ‘passar’ na 3ª pessoa, como se esperaria num poema conceitual) dá mais significação ao texto por evocar a ideia de voo, de liberdade, sobretudo de fugacidade da vida que não espera, passa veloz.
A linguagem do mundo virtual e a do dia a dia, inclusive os estrangeirismos, não fogem à sua criação, que aproveita formas e estilos para dialogar com todo tipo de leitor. Em “Poemail” (Texto sentido, p. 40), ele se expressa por palavras, mas, sobretudo, pelos espaços em branco... é a tentativa do poema que o eu poético diz transcrita em silêncios. Silêncios que flutuam também nos parênteses de “Pedra sobre sabão” e “Poema” (Texto sentido, p. 25 e 38) e no giro das palavras soltas que compõem um só verso-poema: “o esgar coeso das coisas é leve e de peso” (Texto sentido, p.19 ). Em “a revolução das sílabas” (Texto sentido, p.34) as letras parecem beijar-se numa mensagem social e humana, como em “papoula” (Texto sentido, p. 21), dando ao leitor a impressão de movimento contínuo.
A natureza, a criação, o amor e a fugacidade são nortes que perpassam a poética de Lau, pássaro em voo sibilante pelo território do lirismo que não se retrai ante sua inquietude com experiências formais. No poema-verso “Senha”, o eu lírico apenas diz “Ela tinha um rio de seda no abraço” (Texto Sentido, p. 31). Em “Paradigma”, é o efêmero que se interpõe para avisar que “a vida / é um eterno / ir-se embora // costura de / instantes diluídos / na eternidade // tempo / de retornos / irreparáveis // e encontros / irreconciliáveis” (Poesia sem pele, p. 38), temática bem delineada também nos versos de “bizarro”: olhar / ecoado / no espelho // os dias passam / sem que a vida / devolva / nenhum dos pedaços (Poesia sem pele, p. 56)... dá quase pra ouvir Cecília Meireles: “em que espelho ficou perdida a minha face? (“Retrato”). Aliás os sopros de poetas que certamente lhe deixaram marcas aparecem em outros diálogos como ocorre nos poemas “rio Jaguaribe” (Poesia sem pele, p.25); “persomargem” (Poesia sem pele, p. 58); “pessoa” (Poesia sem pele, p. 45); “quintanaico” (Texto sentido, p.41), em que ele intertextualiza versos de Ferreira Gullar, Manoel Bandeira, Fernando Pessoa e Mário Quintana.
Em “Plectro” ele alicia o leitor a um voo entre a densidade e a leveza, pilares de sua criação: “nada será mais denso que um / pequeno pássaro pousado sobre / as crinas da manhã” (Texto Sentido, p. 33). A figura do pássaro é recorrente: “o pássaro é além do pássaro // pássaro é conceito // lição necessária de vôos e pousos” (Poesia sem pele, p. 43); “olhar de pássaro em pétalas retidas // beleza que fere / e impulsiona o hálito / delicado do vento” (Poesia sem pele, p. 52)... essa identificação com o símbolo da fragilidade, mas também da liberdade de pairar sobre todas as coisas, seja talvez a tradução do ir e vir, o exercício da busca pelo equilíbrio das asas que temem as ventanias como se lê em “pulo didático” (Poesia sem pele, p. 26): “acostumei / mirar de frente / os precipícios // não raras vezes / medindo o porte / das asas / para o pulo / desmedido das / coisas inexatas” e em “equilíbrio” (Poesia sem pele, p.64): “quando voar sobre / incêndios / não derrete minhas / asas”, numa resistência patente ao destino de Ícaro.
A poesia de amor, ausente de Poesia sem pele, está presente em Texto sentido, sobretudo em “permito de amor” (p. 43), uma tentativa de revelação de um antirromantismo que não se configura de forma convincente: desculpe / se não fechei a porta / ao sair de uma residência / em ti // é que sou uma casa / sem portas / sem janelas / sem paredes // e sem as imolações / de um coração que / não se permite / aniquilar // pelo amor à própria sede”.
Nesse esgar de idas e vindas, elocubrações existencialistas e reflexões metapoéticas, bem como nas incursões pelas vanguardas e pelos experimentalismos, a poesia de Lau Siqueira paira longe de rótulos ou correntes estéticas. Não se detém a nenhuma fórmula ou estilo. Sua palavra de ordem é experimentar; buscar densidade na leveza (e vice-versa), mansidão no absurdo; conseguir o ‘máximo surto em poemas curtos,’ como ele mesmo declara no poema “conceito” (Poesia sem pele, p. 15), um monumento à concisão, característica primordial de sua poética de máximo no mínimo; de muito no pouco, sem preocupação minimalista, mas, tão-somente, levado pela audácia de manipular as palavras e saber extrair delas todas as otencialidades expressivas.
*Aíla Sampaio é professora do Depto de Letras da UNIFOR.
Do blog: Publicação no blog Esaios de Literatura e Artes, http://litebrasil.blogspot. com/2011/06/poesia-com- sentido-e-sem-pele-um-olhar. html
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