Quarto livro de poemas de Lau Siqueira, Poesia sem pele (Casa Verde, 2011), traz desde o título a sugestão de uma poesia em contato imediato com os influxos do real. Poesia nua, como sugere a apresentação da professora da UNESP Susanna Busato. Duplamente nua: sem os adereços que poderiam esconder-lhe a nudez e sem o anteparo da última vestimenta, a pele. O corpo hipersensível da poesia aberto a todos os estímulos, e entregue, assim duplamente desprotegido, também ao leitor. Lau procura atingir o coração de Eros com as setas de seus versos. Fere e seduz, como revela a epígrafe de Roland Barthes sobre a linguagem.
Conceito, o primeiro poema, facilita a atuação do resenhista quanto a uma característica também presente nos outros livros: “não alongo/ poemas// apenas curto// no máximo surto”. A eficiente utilização do termo “curto”, em oposição a “alongo”, coloca em cena um verbo de aprovação retomado pelas redes sociais, em rima com o instante criativo, “surto”. Claro que a explicação é dispensável, porém assim são os poemas de Lau: de bate-pronto, nunca longos, com boas sacadas sígnicas e versos diminutos, às vezes de uma só palavra. Lembram um pouco a poesia marginal dos anos 70, dos poemas mimeografados que também o poeta experimentou, mas aqui em outro tipo de registro sensível, próximo da brandura: indagam sobre o sentido da vida, dão conta de temores cotidianos, discutem o fazer poético, solidarizam-se com o outro, e como se verá, tudo isso de um modo particular e nem sempre coloquial como naquela época. Assumidamente despretensiosa, a poesia de Lau tem lhe garantido um público invejável em todo país e motivado a reflexão de poetas e críticos, entre eles Frederico Barbosa. Através de blogues, redes sociais, encontros literários, antologias importantes como Na virada do século, publicações de grande tiragem como a agenda Livro da Tribo, vendas online dos livros, e demais expedientes da internet, os poemas têm circulado e são reproduzidos por toda parte, sobretudo pela moçada.
Em Curupira, “o medo é um sol imenso no céu/ e uma boca escancarada para a sede// o medo é a possibilidade de enfrentá-lo”. Atente-se para o que há aí de originalidade na definição. Medos que às vezes nem se anunciam enquanto tais, permanecendo ocultos, perdidos entre a ação e a reação, onde “falls the shadow”, cai a sombra, segundo o verso de Eliot. Já em Berimbau de lua, “isento das alegrias/ fúteis e das tristezas/ dispensáveis” o ser vivente se desincumbe das suas tarefas “com medo do que/ não amedronta/ mais”, sugerindo que algo sempre resta a ser enfrentado. Pois, conforme arremata Escudo, “viver é frágil// como criança que/ acorda com medo/ do escuro”.
O leitor deve ter notado que o corte do verso tende a ocorrer fora da sua unidade sintática ou respiratória, terminando em uma idéia ainda não concluída, o que lhe impõe um ritmo graficamente alquebrado, diferente da concepção mais tradicional e inclusive dos melhores efeitos do enjambement. Se já se anotou que tal tipo de partição do verso tende a sumir com a enunciação vocal, é inegável que o expediente causa uma pequena e salutar ruptura, comum a outros poetas da atualidade. Em qualquer poema, os aspectos verbais, sonoros e visuais não transitam totalmente entre si, dependentes que são do tipo de leitura e do suporte, alcançando no máximo a correspondência baudelariana. Um poema em vídeo de letras animadas se torna praticamente outro ao ser levado para a página estática. A entonação, a expressão facial, a marcação e o gestual de uma performance transformam o silente poema do livro. Assim, o que temos na poesia de Lau é logo apreendido pela nova geração de leitores como uma espécie de marca visual identificatória.
Poetas, capoeiristas e admiradores da cultura brasileira, atenção: existiria símile mais preciso do que “como raiz/ que floresce asas” para essa dança-luta, Capoeira, nome do poema? Um interesse abrangente pela cultura brasileira, somado à busca de fontes em artes e literaturas diversas, não deixa de pôr em evidência certas particularidades. Incorporado há mais de vinte anos à cidade de João Pessoa-PB, vez ou outra Lau revela sua origem, Jaguarão-RS, cidade fronteiriça ao Uruguai, através da linguagem. Veja-se Quarta capa: “o poeta é o vapor barato e o/ lance de dados/ o acaso e o atalho// Macalé e Mallarmé/ no mesmo saco// o poeta é um guapo”. Palavra usada no meio pastoril do RS, designativa de valente e ousado, guapo refere também um imprescindível dote de elegância.
Ao relatar uma experiência, não importa se vivida ou imaginada, Lau retoma o poema O bicho de Manuel Bandeira, denunciando em Persomargem o que ainda não parou de acontecer, apesar do país ter se desenvolvido um tanto de 1947 para cá: “eu vi o homem/ de bandeira// era mesmo um/ homem do mesmo/ outro lixo// não era/ um bicho// o mesmo homem/ de bandeira// cumprindo/ o mesmo outro/ suplício”. Em Chatuba ocorre algo semelhante: “um menino/ corre pelos becos/ em busca do eco/ no estômago vazio// outro menino/ consome a infância/ no shopping// ambos brincam/ com o futuro”.
Se uma formiga, ao atravessar “em diagonal, a página em branco”, trouxe “o frêmito e o mistério da vida” para Quintana (O poema, de Sapato florido), e um “feio mosquito” deixou “sombra de lira” em outra de Vinicius (O mosquito, de Para viver um grande amor), Lau dá sua contribuição ao minimalismo hexápode em Alfabélico: “no meio da insônia/ uma formiga caminha solene/ pela extensão da parede//...// (ainda perco meus olhos/ de tanto olhar)”. Assim, a solidariedade em Persomargem e Chatuba se conjuga com a epifania de Alfabélico, propondo ao leitor, mais que a diversa temática de um poeta, o alargamento da visão sensível para os eventos do mundo. O poeta oferece ao leitor modos de sentir, de se relacionar com o real.
Lau constrói sua teoria literária “como um bicho que perdeu/ os olhos comendo imagens”, versos do poema Pessoa. Em Natureza do espetáculo, as flores amarelas do ipê, “esparramadas nos galhos/ e no palmo de asfalto/ que antecede o chão”, exalam “o indomável/ escândalo da beleza”. Em Tulipa, o olhar de pássaro “fere/ e impulsiona o hálito/ delicado do vento” e em Ponto Google “todo esplendor/ é nada// o que encanta/ são as/ invisibilidades”.
“A tristeza/ é o talho no olho do homem” em Confronto, e a solidão surge enquanto “coisa roendo os ossos” em Na pele do rio. A poesia, entretanto, retira sentido do universo: “dos olhos acesos/ do infinito arranco/ ventos e chuvas// como quem respira/ fundo e de modo/ resoluto” (Terceira sombra), “pequenos desastres/ e uma extrema/ coragem” (Condição humana), “viver/ implica sentir profundo/ a delicadeza do que se/ é quando as máscaras/ estão nuas” (Idade do mundo). Essa sabedoria comparece também em Bizarro e Paradigma, dica para a curiosidade do leitor.
A poesia de Lau Siqueira busca o equilíbrio da razão e dos sentidos, mesmo sob incêndios: “viver é delicado/ argumento de samba/ sentimento de fado”. Mas sem prescindir da ação da poesia, ao contrário daquele Ricardo Reis que desejava ver apenas a vida passar, sem interferir nela. Para Lau, repleto de amor à vida e ao trabalho criativo, nem o extremo da morte pode calar o verso: “até a derradeira sílaba/ caminho no que estimo/ levar-nos a um silêncio// não exatamente mudo” (Olhar de arranjo).
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Sidnei Schneider é poeta, tradutor e contista. Publicou os livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008) e Plano de Navegação (Dahmer, 1999).
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