Conto de Roberto Denser
EXISTE UM INFERNO DESTINADO AOS POETAS.
Fui levado até lá por engano. Não sou poeta, sou humano.
Minhas mãos, quando as tinha, não conchegavam profecias, poesias; não davam formas a tristezas, alegrias, tampouco destilavam palavrilhas, ribombetes. Poetas são profetas; poesias, profecias.
Estava a falar com Mefistófeles. Eu, Sebastian Bach e Aristóteles. Eu lhe implorava as mãos. Bach lhe exorava os ouvidos. Aristóteles, a razão.
— Dou tudo, mas tem condição — falava acima dos gritos — Aos três darei uma missão.
O músico, o pensador e o arquivista. O erudito, o operário e o artista. O aparo, o corolário e o paradigma.
— Dos três só quero um poema. Ali, ao norte, existe uma estrema donde após confundem-se os gritos
(Aquil-del-rei! Aquil-del-rei!)
com poemas nunc’antes’critos.
O que o filho pedia não era problema. “Dás tudo por simples poemas?”, perguntava o grande filósofo.
— Dou mais. Toma um fósforo.
Eu sorria.
— Não antecipe todessa alegria. Não quero qualquer poesia. Quero a dor das carrancas pálidas que por socorro não gritam, mas ávidas bradam e ostentam a flâmula dessa agonia: gritar! eternamente, perante milhões de dementes que, surdos, não ouvem seus gritos.
Bach parecia aflito.
— Eis minha ideia: tu serás plateia.
Quanto a mim, já não sorria.
— Não poderás entrar, serás vigia.
— Que farei eu então? — perguntou Aristóteles.
— Serás escrivão — respondeu Mefistófeles.
Assim, nos despedimos. Felizes, cantantes, partimos. Ao inferno dos poetas seguimos.
Lá chegando, a placa avistamos: “Aqui não cantam os rouxinóis”.
— E agora, o que será de nós?
— Entrarás, não te lembras, filósofo?
— Vamos todos, sou poesiófobo.
Bach silente, nos interrogava; não ouvia, mas mudo falava: “Que é que há, que estão esperando?”
— A bravura do grande poltrão.
E diante do enorme portão, discutimos o nosso destino.
— Sozinho não entrarei.
— Que se dane! — irritado, falei — Sem mãos, não posso escrever.
— Não quero saber. Só entro se for com você.
Assim foi o jeito ceder. Não havia mais nada a fazer, e juntinhos, sem pressa, entramos. Minha entrada, porém, foi engano.
De milhares, uma vil plateia! De surdos, alcateia! No palco, bolotas de carne! Brancas, como osso polido! Carrancas pausadas num grito! Olhares desesperados!
— São poetas, por Deus, são poetas! — Aristóteles choramingava.
— Escreva! Escreva seus versos!
— Não suporto todo este processo!
Os gritos, aflitos, ecoavam. Rimas sem fim destilavam. Só Bach parecia tranquilo.
— Não sei quanto vou aguentar! PEGA O APARO, AGORA, ESCREVE!
— Futura hospedaria de vermes!
— É Augusto!
— Cale-se ou eu não escuto!
Assim, entremores gravou, no papel que o diabo deu, não o canto de Orfeu, mas versos perversos de horror.
— Fujamos, fujamos, agora!
— Bach se perdeu, foi embora!
Tava em casa e sem ele partimos.
Ao encontrar Mefistófeles, Aristóteles disse, sorrindo:
— Aqui, conseguimos!
— Sei de tudo o que aconteceu. Um de vós não me obedeceu. Mas os três pagarão a anarquia: viverás sem razão os teus dias.
— Nada fiz, dá clemência!
— Não torre minha paciência. Quanto a tu, ô cotó, meu castigo: viverás a fazer poesia. Sem as mãos, farás poesia. Por necessidade, farás poesia. Por vontade, farás poesia.
— Dei um grito.
— Bach tem o seu: é plateia.
Meu pneuma: apneia.
— Não tenho papel, não tens mão: enfia o aparo na boca e escreve no chão.
Assim escrevi essa história, em meio a delírios de glória, sonhando co’a grande ovação.
Imagem: “Inferno”, pintura anônima do séc. XVI.